A nova versão de "Berlin Alexanderplatz", que estreia agora nos cinemas (no Espírito Santo ele entrou em cartaz no Cine Jardins, na Capital), introduz algumas mudanças significativas em relação às adaptações cinematográficas anteriores do livro de Alfred Döblin de 1929.
A primeira e mais relevante diz respeito ao personagem central, que deixa de ser um homem que deixa a prisão após quatro anos, cumpridos por assassinato involuntário da namorada. Agora, ele é um refugiado africano que chega à Alemanha a nado, presumivelmente depois do naufrágio do bote em que fez a travessia.
Ele aporta em Berlim disposto a se livrar dos pecados do passado e a se tornar "um homem bom", como informa a voz de sua mulher, que morreu afogada após o naufrágio e cuja voz servirá ao mesmo tempo de narradora e de consciência do protagonista.
A inovação, no que diz respeito ao personagem, parece pertinente. Nos dias atuais são os refugiados na Europa e não só que melhor correspondem aos miseráveis alemães de 1929 ou 1930 mostrados em ao menos duas versões da história para o cinema, sendo a mais conhecida a dirigida por Rainer Werner Fassbinder em 1980.
Na nova versão, o refugiado ganha o nome de Franz, como o Franz Biberkopf original, e um passaporte falso fornecido pelo perverso Reinhold, seu suposto amigo.
Franz insiste em se manter um bom homem. No entanto, o meio que frequenta não ajuda, e ele se vê metido em ocupações mais que duvidosas, como o tráfico de entorpecentes, e a rigor refém da máfia que Reinhold secretamente planeja controlar.
É aí que a trama ganha uma direção surpreendente, sobretudo pela narração em off da finada mulher do refugiado, que insiste na noção de destino. Não é uma noção vazia. Ela remete, justamente, ao expressionismo do livro original. Já para Fassbinder, todos os males vinham da Alemanha. Todas as perversões começavam e terminavam no país. Filme a filme, sua crítica social foi de uma dureza quase inigualável.
Mas, é inegável, a Alemanha é um dos países mais bem-sucedidos do mundo hoje, e um dos mais tolerantes na Europa em relação a refugiados. Buran Qurbani, que dirige este novo "Berlin", não deixa de notar a xenofobia e o racismo como elementos atuantes na cultura do país. Também acentua o caráter neoliberal de certas relações profissionais (como a da bela prostituta que atende por Kitty e, na verdade, se chama Mieze).
Em todo caso, o essencial para o refugiado será sempre sobreviver, seja por que meio for. E os modos de Franz o arrastam para tudo, menos a vida de um "homem bom".
Que não se peça a tal trama alguma leveza. A sordidez espreita cada passo de nosso herói. E o espreita também a consciência, que irrompe na voz off da finada mulher, sempre o lembrando que as tramas em que se envolve dizem respeito a um destino.
As imagens a desmentem. Franz parece dotado de uma ingenuidade quase infinita. Um traço a discutir, quando se trata de refugiados (sobreviventes), sobretudo de um que, no passado, se dedicou a atividades nada inocentes, como o tráfico de pessoas. É essa ingenuidade que determinará a mudança brusca da trama. Então, o destino com "D" maiúsculo parece intervir na trajetória de Franz.
É uma intervenção que não deixa de ser inquietante. Nos tempos de Döblin, a crise de 1929, a depressão e o nazismo irrompiam.
No filme, de 2020, uma horrível e interminável pandemia, a crise econômica que dela decorre, sem falar da distribuição perversa de riqueza que o neoliberalismo proporciona parecem ligados menos ao destino de Franz do que à ascensão dos autoritarismos mais perversos. "Berlin" nos lembra desses perigos já disseminados em nossas sociedades e no nosso modo de pensar. Não é um mérito menor.
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