Em tempos de distanciamento social, parece impossível imaginar a liberdade vivida pela infância das gerações dos anos 1970 aos 1990. A molecada se aglomerava, brincava de pique, corria descalço atrás de pipa e só voltava pra casa bem tarde, depois de se aventurar por todo o bairro. A sensação do vento no rosto, as primeiras amizades colhidas na rua e as conversas sobre a vida, entre as novas e velhas gerações, reúnem pedaços de uma época cada vez mais distante de nós.
Essa sensação nostálgica permeia a trama do curta-metragem capixaba "Memórias de Quintal", que acaba de ser selecionado para a mostra competitiva do VI Festival Latino-Americano de Cinema de Belo Jardim (Cine Jardim). O festival será realizado na cidade de Belo Jardim, no interior de Pernambuco, de 9 a 28 de agosto, em formato digital. A transmissão acontecerá gratuitamente pelo site oficial do evento e na Plataforma Cardume.
O filme dirigido por Simony Leite Siqueira e Lorena D'Avila é fruto das disciplinas de Direção, Produção e Edição do 5º período do curso de Cinema e Audiovisual da Ufes. O projeto - que será exibido na mostra competitiva do evento, entre os dias 16 e 27 de agosto - é um dos 680 curtas inscritos no festival e será exibido na mostra principal, ao lado de obras de Pernambuco, São Paulo, Paraná, Minas Gerais, Rio de Janeiro, Santa Catarina, Rio Grande do Sul, Alagoas, Bahia e Rio Grande do Norte, e junto com filmes vindos da Argentina, Espanha e México. Um feito e tanto para duas diretoras estreantes.
A tarefa de fazer o filme durante o curso colocou os estudantes diante de desafios enfrentados por cineastas experientes. Um deles foi criar as cenas imaginadas pelo roteiro a partir de planos, enquadramentos e movimentos de câmera. “A Lorena e eu mapeamos todo o roteiro para escolher a melhor forma de contar a história em imagens. Quando fomos filmar, muitos planos foram concretizados, outros descartados porque não funcionaram na prática e novos planos surgiram a partir dos percalços e das inspirações do set", conta a roteirista e uma das diretoras, Simony Leite Siqueira.
Para Lorena D’Avila, a oportunidade de dirigir o primeiro filme trouxe aprendizado e boas surpresas. "Foi a nossa primeira experiência dirigindo um curta, tanto para mim quanto para a Simony, e a melhor coisa foi dividir a direção, porque é muito trabalhoso, e duas cabeças pensam melhor do que uma (risos). Era um roteiro muito bonito, bastante íntimo e familiar e acabou se transformando completamente para a gente conseguir adequar à proposta. O set foi muito divertido, especialmente por conta das crianças", avalia.
Mas, espera, qual a história de “Memórias de Quintal”? O curta mostra a rotina tranquila de Nana (Cynthia Dessaune) e de suas netas (Yasmin Modolo e Brenda Siqueira) até a chegada de uma menina misteriosa (Nathaly Cristiny). A comerciante precisa lidar com a necessidade de acolhimento e o desafio de descobrir a origem da jovem forasteira.
O roteiro - marcado pela simplicidade e intimismo - foi construído como um mosaico de lembranças da infância de Simony Leite, envolvendo brincadeiras de quintal, mesas de doces e comidinhas caseiras, além da devoção católica e as histórias contadas pelo pai da realizadora, José Teixeira de Siqueira, hoje com 84 anos, o Zé do Bar, antigo comerciante de Itaquari, em Cariacica.
Ao se desenrolar como um dia simples no cotidiano, o filme toca temas como os laços de família e os vínculos de amizade, convivência e solidariedade comunitária. Há pistas da memória afetiva nos sons da rua e do apito do trem, na música pop dos anos 1980, nas conversas de bar e nas ondas do mar batendo nos pés fincados na areia da praia.
"O caminho de uma produção audiovisual é minucioso e árduo porque exige dentre outras condições planejamento, técnica, integração, motivação e o compromisso de todos. Cada um que assumiu e se entregou a uma função dentro da equipe (totalmente formada por estudantes universitários) e do elenco, fez com o coração aberto e muita vontade de experimentar e aprender. Além disso, tivemos o apoio dos familiares e a dedicação dos professores que nos orientaram em cada etapa de realização", destaca Simony.
"Memórias de Quintal" teve uma exibição pública em dezembro de 2019, no Cine Metrópolis (Ufes), dois meses antes da deflagração da pandemia. Esta é a primeira seleção do filme em um festival. Alguns dos colegas de turma que integraram a equipe, inclusive, se formaram e já estão atuando no mercado.
O trabalho acadêmico teve a orientação dos professores Klaus’Berg Nippes Bragança, José Soares Júnior e Erly Vieira Júnior. No semestre seguinte, com a turma no sexto período do curso, em 2019, o curta foi apresentado ao professor Gustavo Chritaro, docente do Departamento de Música da Universidade Federal do Espírito Santo, que compôs a trilha musical para a obra.
Formado por mulheres, o elenco conta com as crianças Brenda Siqueira, Yasmin Modolo e Lyria Barcelos, que participaram de uma produção audiovisual pela primeira vez, além da atuação da educadora social e dramaturga Priscilla Gomes, e das atrizes Cynthia Dessaune ("O Fruto Proibido") e Nathaly Cristiny (de "O Cemitério das Almas Perdidas", novo filme de Rodrigo Aragão), que, assim como as demais integrantes, não receberam cachê. A figuração contou com crianças da comunidade do Morro da Companhia, em Itaquari, lugar escolhido para abrigar algumas locações.
"Estamos felizes e honrados de participar da seleção principal do Cine Belo Jardim, ao lado de outras produções brasileiras e estrangeiras, num espaço de exibição, reflexão e discussão sobre cinema tão qualificado, sério, plural e democrático. É a oportunidade de trocar experiências, conhecer uma diversificada seleção de obras e compartilhar nosso curta com realizadores e espectadores de várias partes do país, da América Latina e do restante do mundo", celebra Simony.
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