"Um relacionamento consiste em inventar sua própria linguagem", disse a diretora francesa Céline Sciamma em entrevista a um jornal britânico um ano atrás, sobre o seu então recém-lançado "Retrato de uma Jovem em Chamas", premiado no Festival de Cannes. "É por isso que você chora quando perde alguém que ama. Essa língua você não vai falar com mais ninguém."
O relacionamento construído no drama de época de 2019 é entre duas mulheres adultas que se apaixonam. Mas a ideia de criar uma linguagem em que dois sujeitos se encontram também permeia a relação entre mãe e filha de "Petite Maman", filme que ela estreou na mostra competitiva do Festival de Berlim nesta quarta (3).
Sciamma pôs na tela uma espécie de salto no tempo para que a hierarquia etária entre as duas personagens, uma de oito e outra de 31 anos, fosse abolida -algo que ela mesma chama, em entrevista por videoconferência, de uma "fantasia secreta".
A pequena Nelly (Joséphine Sanz) acaba de perder sua avó e retorna, com seus pais, à casa onde sua mãe (Nina Meurisse) passou a infância para esvaziá-la definitivamente. No dia em que a criança descobre que sua mãe foi embora antes do dia definido para a partida da família, ela adentra a floresta próxima e encontra uma menina da mesma idade construindo uma cabana feita de troncos.
O encontro das duas logo levanta o principal mistério do longa -a nova amiga de Nelly tem o nome de sua mãe, a leva para uma casa que é uma versão mobiliada do imóvel recém-desmontado e a apresenta à sua mãe que, assim como a avó de Nelly que acaba de morrer, usa uma bengala.
"É como um novo mito sobre encontrar seus pais quando criança, um novo conto", define Sciamma. O filme, gravado já durante a pandemia, em novembro do ano passado, também foi pensado para o público infantil -esse é um dos motivos, justifica a cineasta, para ele ter apenas 72 minutos de duração.
A diretora conta que rodou o filme em sua cidade natal, e que a casa onde o filme se passa é uma mistura do que havia nas residências de suas avós. Ela afirma, no entanto, que mais do que um filme ligado à sua biografia, a história é uma tentativa da cineasta de "criar espaço" para o espectador.
"Se você vir o filme com a criança que você ama, acho que, quando vocês saírem [do cinema]", exemplifica, essa saída "não será igual".
"Petite Maman" não se edifica com a intensidade de "Retrato de uma Jovem em Chamas". São, inclusive, em gestos pedestres que mãe e filha vivem um luto compartilhado -como quando Nelly, no banco de trás do carro, leva petiscos e um suco de caixinha à boca de sua mãe, que conduz as duas para longe da casa de repouso onde a morte do começo da trama acontece.
Mas é só quando as duas se encontram aos oito anos de idade que elas conseguem conversar, ainda que pouco, sobre a melancolia de Marion e os questionamentos de Nelly sobre se é ela a razão da tristeza da mãe.
"O filme é sobre a perda, mas acho que ele é mais sobre abolir o passado, o presente e as barreiras da idade", diz a diretora, que conta que animes de Hayao Miyazaki, como "Meu Amigo Totoro", inspiraram parte da história de "Petite Maman".
Ela, que chama a experiência de "um salto no tempo sem máquina do tempo", afirma que a ideia era se distanciar da figura de um "turista num momento histórico" nessa passagem de anos.
Em vez de sonhar em viajar no tempo para encontrar civilizações antigas ou um futuro melhor que o presente, no filme, a fantasia acontece para que se possa compartilhar um tempo em comum.
"Quando você fala em voz alta, parece uma fantasia. É uma fantasia secreta", diz Sciamma, sobre encontrar os pais quando pequenos. "Eu espero que isso se torne uma fantasia coletiva."
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