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'Diz a Ela que Me Viu Chorar' mostra dilemas dos usuários de drogas

"Diz a Ela que Me Viu Chorar" mostra dilemas dos usuários de drogas

"Com o filme, aprendi que o amor é um ato de resistência", diz Maíra Bühler, diretora do longa que está em cartaz em Vitória

Publicado em 17 de novembro de 2019 às 10:01

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Cena do documentário "Diz a Ela que Me Viu Chorar". (Vitrine/Divulgação)

Encerrado em 2016, na gestão do então prefeito João Dória (PSDB), o projeto "De Braços Abertos" chegou a atender mais de 100 pessoas que buscavam uma alternativa para se livrar do vício no crack. Os usuários eram abrigados no histórico  Hotel Social Parque Dom Pedro, na região da Cracolândia, no Centro de São Paulo.  A iniciativa, criada pelo ex-prefeito Fernando Haddad (PT),  é a base de pesquisa do emocionante documentário  "Diz a Ela que Me Viu Chorar" (2018), primeiro projeto solo da cineasta e antropóloga Maíra Bühler ("A Vida Privada dos Hipopótamos"). 

O longa, que está em cartaz no Cine Metrópolis (Ufes), chega a Vitória após receber efusivos aplausos durante a exibição no festival Cinéma du Réel, na França, no qual ganhou o prêmio "The Library Award", em 2018. Neste ano, participou da seleção do 8º Olhar de Cinema, conquistando o prêmio de Melhor Filme.  De acordo com a tradicional revista francesa Cahiers du Cinéma, a mostra de Curitiba é um dos melhores festivais de cinema atualmente no Brasil.

Maíra mostra talento e sensibilidade ao retratar um grupo de usuários de drogas (que viviam em Parque Dom Pedro) sem estereótipos. Pelas lentes de sua câmera observadora,  que remetem aos trabalhos existencialistas do mestre português Pedro Costa ("Cavalo Dinheiro"), vemos pessoas angustiadas, em busca de amor e conforto afetivo para fugir da solidão. Sentimentos que soam comuns a qualquer morador "preso" na opressão das grandes metrópoles. 

A falta de diálogos - muitos parecem não se entender em seus dilemas afetivos - e os sentimentos "orgânicos" que afloram neste microcosmo, no caso o decadente prédio paulistano, também soam particulares aos longas de Eduardo Coutinho, em especial "Edifício Master" (nas devidas proporções, é claro!). 

"Nesse filme eu assumo o desafio de fazer cinema com os personagens e não sobre eles. É um olhar que tem a ver com a intimidade, com consentimento, com chegar perto, compartilhar o tempo, descobrir afetos e aprender sobre a condição humana", filosofou a diretora em entrevista ao "Divirta-se" para falar sobre o lançamento de "Diz a Ela que Me Viu Chorar".  Abaixo, veja trechos do bate-papo com Maíra Bühler.

"Diz a Ela que Me Viu Chorar" é um filme intimista, que mostra um outro olhar sobre os usuários de drogas, sem estereótipos. Era essa a opção?

  • Essa sempre foi a nossa ideia, fazer um olhar contra o preconceito que essas  pessoas sofrem. Queria fazer uma viagem cinematográfica para entender a realidade deles, explicando essa maneira de viver muito particular.  Não é um filme sobre o crack, sobre drogas, mas, sim, sobre a vida. Eles vivem em um contexto de extrema vulnerabilidade e isso é a força motriz para retratar experiências de vida, especialmente sua solidão e seus dilemas afetivos.

Você termina o filme com uma mensagem dizendo que a prefeitura de São Paulo cancelou o projeto "De Braços Abertos". Como foi saber que os usuários perderam o apoio das instâncias públicas na luta contra as drogas?

  • Estávamos filmando no hotel social quando ocorreu o segundo turno das eleições em 2016, a que legitimou João Dória como prefeito.  A partir do momento em que os moradores souberam que o eleito era contra a política de redução de danos e a manutenção de direitos sociais, entraram em um processo de desestruturação. Observei pessoas que estavam melhorando, se livrando das drogas, e retomando contatos com a família, a ponto de entrar novamente no mercado de trabalho, se perdendo por conta da desassistência do poder público. 

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Observei pessoas que estavam melhorando, se livrando das drogas, e retomando contatos com a família, a ponto de entrar novamente no mercado de trabalho, se perdendo por conta da desassistência do poder público.

Maíra Bühler
diretora do filme "Diz a Ela que Me Viu Chorar"
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Seu filme tem um viés extremamente humanista. Vi muito do cinema do português Pedro Costa, inclusive. Ele é uma referência? Quais outros trabalhos servem de base para o documentário?

  • Sim, Pedro Costa é uma grande referência, especialmente o seu trabalho em "O Quarto de Vanda" (2000). Mas claro que também dialogo com Eduardo Coutinho.  Tem um um filme búlgaro, chamado "Sofia Last Endless", que serve como espelho. Na trama, uma equipe de cinema acompanha uma ambulância que tenta atender várias pessoas durante a semana. Uma ótima crítica a um sistema de saúde se despedaçando, bem parecido com o nosso. 

Cena do filme "Diz a Ela que Me Viu Chorar". (Vitrine/Divulgação)

"Diz a Ela que Me Viu Chorar" fala basicamente de amor, mas, ao mesmo tempo, de abandono, solidão e desassistência. Como esses sentimentos se inserem no Brasil atual?

  • Amor é o foco essencial do filme. Em um mundo marcado pelo ódio às diferenças, é muito importante falar desse sentimento. Mas, também, têm as questões do abandono e da desassistência. Os mais vulneráveis socialmente sofrem com isso no país. Senti isso na pele ao ver o fim do projeto "De Braços Abertos".  Essas pessoas tiveram acesso à saúde e à assistência social, mas perderam isso de forma abrupta. O problema da prefeitura foi colocá-los na rua de maneira totalmente irresponsável, abandonadas à própria sorte. O amor que essas pessoas passam me fez crescer muito.

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Com o filme, aprendi que o amor é um ato de resistência. Especialmente no momento de ódio que estamos vivendo no mundo e no país 

Maíra Bühler
diretora do filme "Diz a Ela que Me Viu Chorar"
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O longa chega em um momento complexo para a cultura do país, com censura à produção audiovisual e cortes nas leis de apoio e incentivo por parte do governo federal. Lançá-lo também é sinal de resistência?

  • Estamos vivendo um momento terrível para cultura. Não só a cultura, mas todas as políticas públicas estão sendo desarticuladas pelo governo federal.  É um momento de união. O artista não pode desistir. 

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