Aquela quarta-feira de verão amanheceu diferente, com um sol tipo vermelho-sangue. Afinal, naquele dia, a esperança venceu o medo. Era 1º de janeiro de 2003 e um arretado metalúrgico pernambucano fazia história ao assumir a Presidência da República, quebrando o monopólio de poder que sempre esteve nas mãos das elites.
O jornal A GAZETA, em sua manchete do dia seguinte, trazia estampado: Lula Pede Mutirão Contra a Fome. Muitos patriotas pensavam: finalmente, agora é pra frente Brasil... Muitos, menos algumas famílias, como o clã burguês (decadente) comandado pela matriarca Laura, por exemplo. Mas, espera... quem é essa Laura?
A Laura (Ítala Nandi, em grande atuação) em questão é a protagonista de "Domingo", longa que chega hoje ao Cine Metrópolis após ser aplaudido por vários minutos no Festival de Veneza 2018. A senhora e seus rebentos decidem fazer um churrasco em seu sítio (caindo aos pedaços) no interior do Rio Grande do Sul para curtir um dia em família. Lógico que chorar a posse de um presidente esquerdista também está no cardápio. Essas e outras mazelas familiares são retratadas com excelência - e uma dose de crueldade (quase cirúrgica) - pelos diretores Clara Linhart e Fellipe Barbosa.
A trama é deliciosa ou de mau gosto, dependendo das suas preferências políticas. De Laura ao professor de tênis galã (o capixaba Chay Suede), passando pela nora espevitada (Camila Morgado, também ótima) até a doméstica Inês (Silvana Silvia): todos têm a sua visão, os medos e as esperanças em relação ao novo governo que está chegando.
Em um filme que faz claras citações ao cinema de Jean Renoir, Robert Altman e Lucrécia Martel, no que tange às tensões nas relações entre diferentes classes sociais, sobressaem cenas hilárias e de humor cortante, como quando a família, com medo dos comunistas assumirem o poder, principalmente por conta da força que a esquerda dá para o MST, propõem um bizarro brinde ao novo presidente.
Em entrevista a A GAZETA, Clara Linhart, falou sobre a repercussão do filme no exterior, fez uma análise sobre o comportamento da classe média durante o governo Lula e apontou que, no governo Bolsonaro, os temores, aparentemente, mudaram de lado. Agora, em 2019, quem tem medo somos nós: artistas, professores e pessoas de esquerda, relata. Abaixo, veja o trailer de "Domingo".
O filme foi muito bem recebido no Festival de Veneza. Sessões lotadas e público muito interessado e reativo. Tivemos boas críticas internacionais, também. Era agosto de 2018, antes das eleições presidenciais no Brasil. O ex-presidente Lula já estava preso, portanto, a maioria das perguntas giravam em torno do futuro político do país com a criminalização de parte expressiva da esquerda. Já era impossível responder naquela época.
A reposta é Lucas Paraízo, o autor do texto. A alma e o coração desse filme. Ele escreveu o roteiro de Domingo baseado em suas memórias de infância passadas em Pelotas (RS), mais especificamente na charqueada onde filmamos. O momento em que o filme se desenrola é um pano de fundo histórico poderoso, pois é o momento de uma ruptura da hegemonia das classes altas e da direita no governo. Semana passada, num debate no CineArte UFF (em Niterói, no Rio de Janeiro), o filósofo Patrick Pessoa fez da plateia uma interessante reflexão; Lula seria o 5º personagem proletário do elenco (além dos funcionários do sitio). Gostei dessa definição.
A família representada nesse filme faz parte de uma burguesia decadente, sim. Eles ainda têm posses terras, ovelhas, empregados, uma casa grande mas está tudo minguando. A reação da família ao grande evento histórico que está se desenrolando na pequena TV do quarto da empregada, é, para alguns, de desinteresse total. Para outros, é puro pavor. Laura, a matriarca interpretada pela atriz Itala Nandi, tem medo de uma ditadura do proletariado, que o MST invada suas terras, que confisquem seus bens. Filmamos em dezembro de 2017, e, na época, com o recuo histórico, nos parecia engraçado ver o quanto esses temores da elite não tinham se concretizado durante os governos do PT. Agora em 2019, após a eleição do presidente Bolsonaro, quem tem medo somos nós: artistas, professores, pessoas de esquerda. Você destaca características da família - homofobia, racismo, machismo como comportamentos disfuncionais. Acho que, infelizmente, eles são muito comuns na sociedade brasileira em quase todas as classes sociais.
O medo da censura vem desde 2017, quando uma interdição proibiu o público de conferir a exposição Queer Museu, em Porto Alegre. Isso é muito grave! Censura é um crime contra a constituição. Quanto à Ancine, que está sendo desmontada pelo governo atual, não cabe o papel de censurar nada. A Ancine cabe regulamentar, fomentar e fiscalizar o setor do audiovisual brasileiro de forma ampla e democrática. Não tenho medo do longa ser acusado de fazer "doutrina" a favor da esquerda. Primeiro, porque seria um elogio, mas, principalmente, porque tratamos os personagens dessa família decadente com doçura. Expomos suas contradições mas não os condenamos.
Estamos vivendo um momento político sombrio. O Brasil elegeu um presidente de extrema-direita com direito a todos os horrores imagináveis: elogios à tortura, à ditadura, ao machismo, censura, grosserias, enfim, um calvário. Diante de um governo tão obscuro, tudo que represente a luz é abominado. Artistas, professores, pesquisadores, pensadores estão sendo execrados por sua capacidade de gerar conhecimento, dúvida, questionamentos. Acredito que essa atitude preconceituosa está se abrandando e parte das pessoas que votaram nesse governo está percebendo o quão nocivo ele está sendo para todo o país.
Vou filmar um longa-metragem de ficção intitulado Os Sapos. Uma adaptação da peça teatral de Renata Mizrahi. É uma história que se passa inteiramente numa locação também, como Domingo. Mas, dessa vez, nas montanhas da serra do Rio de Janeiro. Aliás, tem duas capixabas muito importantes para Os Sapos: Carla Osório, da distribuidora Livres Filmes, e Fernanda Abreu, produtora executiva do filme.
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