Nesta terça (19), Carlos José Fontes Diegues completa 80 anos. Nascido em Maceió em 19 de maio de 1940, o cineasta Cacá Diegues anda animado. Concluiu nessa quarentena o roteiro de "Deus Ainda É Brasileiro", que será o seu 19º longa-metragem.
Uma espécie de continuação de "Deus É Brasileiro" (2003), o novo filme terá o retorno do personagem celestial, mais uma vez interpretado por Antônio Fagundes. "O que aconteceu nesse país?", Deus, perplexo, questiona.
Um dos fundadores do cinema novo, Cacá também anda indignado. "É uma burrice dizer que streaming não é cinema", reclama. E critica os diretores que veem as transições tecnológicas com tantas ressalvas, como o americano Martin Scorsese.
Em "Bye Bye Brasil" (1979), Cacá retratou as mudanças pelas quais o povo passava. Quarenta anos depois, ele identifica novas transformações, desta vez no poder, sob Jair Bolsonaro. "Nem a ditadura militar foi tão ruim como é esse governo".
Em meio à euforia das ideias novas, o fascínio pelo cinema e a repulsa pelo autoritarismo, o diretor de "Xica da Silva" (1976), seu maior sucesso popular, falou à reportagem.
Foi uma tomada de consciência em relação ao Brasil daquela época [anos 1960], uma descoberta do país por meio do cinema. A ideia era registrar uma imagem do Brasil que estava escondida, que não aparecia nas chanchadas dos estúdios do Rio e nos filmes da Vera Cruz em São Paulo.
Hoje vejo o cinema novo como uma chegada tardia do modernismo ao nosso cinema, no sentido de uma construção de linguagem com elementos brasileiros.
Mas cada um de nós criou uma forma de filmar. O realismo social do Nelson [Pereira dos Santos] não tem nada a ver com o barroco do Glauber [Rocha], que não tem nada a ver com o cinema do Paulo César [Saraceni].
O cinema novo não foi o ápice do cinema brasileiro, foi o início. A ideia central era dar, enfim, um cinema ao Brasil.
Tínhamos um programa com três pontos muito simples: o primeiro era mudar a história do cinema; o segundo, mudar a história do Brasil; e o terceiro, mudar a história do mundo [risos].
Depois descobri que o cinema não muda a história, muda a forma de pensar o mundo, o Brasil. Foi o que conseguimos com o cinema novo.
Houve um momento muito importante na minha vida, acompanhar a primeira sessão de "Deus e o Diabo na Terra do Sol" no Festival de Cannes, em 1964.
Estava no festival com o meu primeiro filme, "Ganga Zumba", que integrava a Semana da Crítica, e "Deus e o Diabo" estava na competição.
Fui junto com o Glauber assistir a essa sessão. Era algo que nunca ninguém tinha visto antes, aquelas personagens, aquela música que não se sabia de onde vinha, aquelas imagens... Era como se introduzisse a cultura marciana no cinema. Ali eu percebi que valia a pena fazer cinema no Brasil. Inaugurava-se uma outra maneira de fazer cinema.
Não sei se o Glauber teve influência no meu trabalho. Teve influência na minha vida porque foi um grande amigo, alguém que eu admirava, amava. Eu acho que o Glauber sempre foi o melhor de todos nós [diretores do cinema novo]. Mas eu nunca procurei fazer um filme igual a ele.
Vivo cada filme que faço com intensidade, como se fosse a minha própria vida. Mas quando fica pronto, quando começa a ser exibido, eu abandono porque não quero ser prisioneiro daquilo que eu já fiz.
Não sou um cineasta que chora o passado, nem que joga cartas pro futuro. Quero falar do presente.
Quando faço um filme histórico como "Xica da Silva" (1976), estou falando do presente, com várias metáforas.
Era fascinado pela história dela. Além disso, resolvi fazer o filme porque estávamos vivendo um período horroroso da ditadura. Não podia fazer o que queria, era uma tristeza.
Eu achava que ceder a essa tristeza seria um ponto dado para eles. Pensei que o riso era uma forma de reação, uma resposta à depressão.
Eu tinha o desejo de mostrar com "Bye Bye Brasil" (1979) que o país estava mudando - não num sentido propriamente político, mas nos costumes, nos hábitos. E a gente não podia ficar prisioneiro do passado.
Era preciso assumir as mudanças feitas pela população em todas as regiões, em todas as classes sociais.
"Bye Bye Brasil" é o meu maior sucesso internacional e houve uma reação muito curiosa na época. Na Europa, sobretudo na França, diziam que era um filme melancólico sobre o fim de uma civilização. Já para os críticos dos EUA e da América Latina, era o contrário, um filme muito espontâneo sobre uma civilização que estava começando. Para uns, uma morte; para outros, um renascimento.
Foi exatamente o que eu tinha feito, o registro de uma sociedade que estava acabando para dar lugar a uma outra que eu não sabia para onde ia.
Não penso em um filme como obra fechada, mas como obra feita. Depois que o filme vai para o público, não se pode mais mudar. Ele passa a pertencer ao público.
O crítico francês Serge Daney (1944-1992) dizia que um bom filme é aquele que muda de significado a cada época e a cada público que o vê.
"A Grande Cidade" (1966) foi uma declaração de amor ao Rio de Janeiro. Eu sou de Maceió e vim para o Rio muito cedo. Mas tenho essa memória alagoana, da infância.
Foi no Rio que me formei, que conheci os cineastas. Sempre gostei de cinema, tudo o que eu sei eu aprendi no cinema. Mas a verdade é que eu só resolvi me tornar cineasta quando encontrei pessoas que tinham o mesmo sonho que eu, e esse encontro acontecia em lugares como a Cinemateca do MAM, no Rio.
É um dos meus filmes mais espontâneos. Gosto muito de "A Grande Cidade" (1966) porque é, sobretudo, a respeito de um amor sincero e de um pesadelo. E é ainda sobre pessoas que vieram do Nordeste para o Rio. Eu sou uma delas.
Ao mesmo tempo em que existe uma melancolia, tem um tom esperançoso. Há isso em todos os meus filmes.
Comecei ali uma nova etapa da minha vida de cineasta. Foi meu primeiro filme com uma estrutura narrativa temporal clara, uma imposição do tempo narrativo sobre a montagem espacial dos filmes precedentes.
Como se eu estivesse me acalmando diante do cinema, sem medo de contar uma história de um jeito que não fosse aparentemente cinematográfico. Glauber foi o primeiro a escrever sobre isso, num artigo maravilhoso em defesa de "Joanna Francesa" (1973).
Li muito na infância, na juventude. Meu pai me obrigava a ler. Às vezes, ele fazia uma coisa chata, mas hoje vejo como algo bom. Ele saía para trabalhar de manhã e me dava um livro. "Quincas Borba", por exemplo. Pedia que eu lesse determinado capítulo e, à noite, eu tinha que explicar a ele o que era.
Minha juventude foi literatura brasileira com medo de chinelo [risos]. Mas isso me estimulou muito.
Sempre achei que a cultura brasileira era, antes de tudo, a sua literatura. De certo modo, isso aconteceu com todos os colegas do cinema novo.
Estou há cinco semanas sem sair de casa. Tenho medo e sou muito obediente. Como estou prestes a fazer 80 anos, estou no grupo de risco.
Nesses dias em casa, vi diversos filmes. Gostei de "Jojo Rabbit" (2019). Também revi um filme clássico do Hitchcock "Intriga Internacional" (1959) e achei maravilhoso.
Acho que os grandes circuitos cinematográficos nunca mais voltarão a ser como antes. Serão menos salas, e essas salas serão menores.
O cinema passará a ser o streaming, e os lançamentos de filmes serão muito mais discretos. É uma burrice dizer que streaming não é cinema.
Nos anos 1930, muitos diziam que o som não era cinema, que tinha que ser mudo para que fosse considerado cinema. Aí veio o technicolor, e diziam que não era cinema, que tinha que ser preto e branco.
Você pode estranhar essas mudanças e se incomodar com elas, mas são definitivas. O streaming é uma dessas mudanças, está para o século 21 como o cinema sonoro estava para os anos 1930.
Uma das minhas maiores emoções na vida foi a estreia de "Xica da Silva" em Madureira [bairro da zona norte do Rio]. As pessoas cantavam, dançavam... Situações assim nunca mais acontecerão, o streaming tomou conta.
Não tenho nenhuma nostalgia. É possível ter uma felicidade extraordinária com uma determinada experiência do passado e, ao mesmo tempo, saber que isso não vai se reproduzir mais.
Não gostei nada das declarações do Scorsese sobre o streaming [nos últimos anos, o diretor americano tem feitos diversas ressalvas à experiência de ver filmes em casa]. Ele foi de um oportunismo, de uma falsidade incríveis.
Sou amigo dele e acho que é um gênio, um grande cineasta. Mas pisou na bola. Não se pode dizer que o cinema acabou. Não! Virou outra coisa. Como quando era preto e branco e virou technicolor, e todo mundo reclamou. É impossível controlar esse avanço.
Desde que concluí "O Grande Circo Místico" [lançado em 2018], não pensei mais em cinema. Eu queria fazer um filme com a minha filha e ela faleceu [Flora Diegues morreu em junho de 2019 aos 32 anos].
Passei quatro anos tratando dela, que estava com um câncer no cérebro. Não pensei em mais nada nesse período. Havia um roteiro que eu queria fazer com ela e não farei mais.
Terminei um roteiro na quarentena e estou começando a montar a produção. O título é "Deus Ainda É Brasileiro".
"Deus é Brasileiro" [filme de 2003, com Antônio Fagundes e Wagner Moura] termina com Deus indo embora. Agora, quase 20 anos depois, ele volta ao país. Deus diz: "Quando saí daqui, estavam todos satisfeitos, o Brasil pentacampeão do mundo. Agora volto e estão desempregados, chorando. Perderam de 7 a 1 da Alemanha. O que aconteceu nesse país?".
Mais uma vez com o Fagundes. Deus envelheceu um pouco [risos], mas não tem importância.
Nós estamos vivendo um paradoxo da história do cinema brasileiro. Tenho 60 anos de cinema praticamente e posso garantir que estamos vivendo o melhor momento em matéria de criatividade. Nunca vi um cinema brasileiro tão diverso, com diferenças geracionais, regionais, políticas, estéticas...
Ao mesmo tempo, esse é o pior momento da história da economia do cinema brasileiro. Há dois anos, a Ancine não produz nada. É uma economia que está sufocando a gente. Quando acabar a quarentena, como é que você vai produzir? Eu não sei como farei o meu filme.
Eu não sei o que ela fez até agora na Secretaria da Cultura, eu simplesmente não sei [risos]. Tudo o que acontece no governo federal não é surpresa para mim. O que eu sinto é pena, na verdade. A entrevista dela à CNN foi uma tragédia.
Nem a ditadura militar foi tão ruim como é esse governo. Na ditadura, havia alguma esperança, a gente achava que o pior já tinha passado. Com este governo atual, quando você acha que o pior já passou, acontece algo ainda pior.
O mundo todo está rindo do Brasil! Leio jornais estrangeiros, tenho muitos amigos de outros países. Ou riem ou têm pena da gente.
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