"Odeio essa palavra, 'encalhada'", diz a atriz Lília Cabral. É difícil, porém, se esquivar dela ao descrever o papel da atriz em "Maria do Caritó", que chega agora aos cinemas. Virgem aos 50 anos, ela não deu nem um beijo sequer. Até seu apelido reflete o estado civil -caritó é como os nordestinos chamam um nicho de prateleira onde guardam os objetos perigosos para as crianças, além de eufemismo para as mulheres mais velhas que não se casaram.
Cabral, que encomendou o texto e ajudou a transformá-lo em filme, retorna ao papel quase uma década depois de estreá-lo nos palcos cariocas, em 2010. Na trama, vive uma mulher que, por causa de uma promessa do pai ao desconhecido santo Djalminha, permanece casta entra ano, sai ano e contra a vontade.
A pouca probabilidade da coisa faz com que ela seja considerada milagreira na cidadezinha onde vive, a fictícia Úrsula. E se torne alvo de um coronel (Leopoldo Pacheco) que deseja usá-la como cabo eleitoral na campanha para prefeito.
A única esperança de Caritó para se livrar da "teia de aranha consagrada" é, então, se casar. De preferência com o garanhão Anatoli (Gustavo Vaz), que chega na cidade com o circo capitaneado por Teodora (Juliana Carneiro da Cunha).
Autor da peça original, o dramaturgo Newton Moreno assina a adaptação para o cinema ao lado do roteirista José Carvalho. Com a ajuda do diretor João Paulo Jabur, retratam um Brasil mítico decorado de chita e herdeiro de Ariano Suassuna, onde abundam os neologismos (galã é galão, imobilizado é imobilítico) e os personagens arquetípicos, entre padres corruptos e donzelas sedutoras.
"O filme não é datado em termos de lugar ou tempo. Você só entende que ele se passa em algum lugar do interior do Brasil e em algum momento do século 20", diz Jabur, diretor de novelas da Globo à frente do primeiro longa.
Ele cita a mescla de referências dos figurinos, que vão dos vestidos dos anos 1950 de Caritó à maquiagem da década de 1980 da noiva do coronel como exemplo dessa atemporalidade, além dos raros aparatos tecnológicos em cena.
Ainda assim, os tempos atuais despontam aqui e ali. O pot-pourri que Caritó grava em fita cassete (e que pronuncia, de forma hilária, "pou-pourrite") tem a "Paradinha" de Anitta, o sertanejo "Infiel", de Marília Mendonça, e "Fogo e Paixão" de Wando.
Uma declaração do coronel de que, se eleito, acabaria com a Secretaria de Cultura da cidadezinha soa como uma referência à extinção do Ministério da Cultura pelo atual governo, apesar de a fala estar presente desde a montagem inicial da peça, uma década atrás.
Por outro lado, a solteirona de 50 anos de Lilia Cabral se tornou sexagenária no período entre a estreia da peça e o lançamento do filme. Aliada à mudança de suporte, a passagem do tempo levou Moreno a arrefecer a comédia teatral rasgada em favor de uma composição mais sutil.
"A tela pedia isso", explica o dramaturgo. "Além disso, ficou evidente que poderíamos tratar melhor o que é uma mulher envelhecer sozinha neste país." Cabral também diz ter se esforçado para adoçar a performance que apresentou pelo país na peça.
"A tela imensa diz muito, mais do que as palavras. E meu jeito desconjuntado do teatro desapareceu, porque ela é um ser humano", analisa a atriz. Tal qual Moreno, ela também vê reflexos do movimento de empoderamento feminino na sua nova Caritó, sobretudo na amizade com a melhor amiga Fininha (Kelzy Ecard). "A atitude dela faz parte do movimento de todas as mulheres que lutam para ter ao seu lado bons amigos, bons companheiros, bons amantes, sem levantar bandeira."
Já a história dos indivíduos que, como a personagem, se veem entre a política e a igreja, continua mais presente do que nunca, diz Cabral. "Mas sempre conseguimos um jeito de sobreviver", afirma.
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