Machado de Assis teve epilepsia, Marcel Proust teve asma, e Julio Bressane carrega uma patologia desde que ganhou sua primeira câmera, em 1958, aos 12 anos -e da qual o diretor, aos 75 anos, não pretende se ver curado tão cedo.
Seu cinema segue vigoroso, e "Capitu e o Capítulo" -que tem sua primeira exibição para o público brasileiro no festival online Olhar de Cinema e deve chegar ao circuito no início de 2022- é seu mais recente colírio.
Ou seria melhor nomear a obra como um par de óculos de lentes grossas -qual os que o diretor usa para identificar este repórter na tela do computador-, já que exigem olhos abertos a imagens fora do comum. Não espanta que sua visão do "Dom Casmurro" traduza mais a forma que o enredo do romance. Em suma, esqueça o "traiu ou não traiu".
O nome da adaptação ele já tinha desde os anos 1980, quando o poeta Haroldo de Campos sugeriu que, no romance, o capítulo era mais importante que Capitu -são 148 ao todo em cerca de 200 páginas. "Anos depois, li uma análise sobre as frases longas do Proust, que funcionavam como uma maneira de respirar e eram atribuídas à asma dele", aponta Bressane. "Sugeri que o capítulo poderia ser também um sinal artístico da epilepsia do Machado".
Foi a oportunidade para introduzir imagens descoladas da trama, mas que pertencem ao "signo Machado de Assis". Nisso, entram a tradução de "O Corvo", de Edgar Allan Poe, a paixão por Shakespeare, além de diversas opiniões sobre poesia brasileira -que saem da boca de Enrique Diaz, que faz o Casmurro, o Bentinho maduro.
Esse é o terceiro filme que o escritor carioca evocou a Bressane -depois de "Brás Cubas", de 1985, e a "A Erva do Rato", de 2008-, e agora o diretor recupera suas produções. Destaque para o "necrofone" de "Brás Cubas" -um microfone que rela em um esqueleto, produzindo um barulho seco, em referência ao verme que roe as frias carnes. "São imagens sobreviventes", afirma Bressane, para quem esses trechos não são autorreferências, mas "copiões de autoria anônima".
Sua Capitu também é uma reaparição. Mariana Ximenes empresta suas íris esverdeadas aos olhos de ressaca. Ela já havia feito uma ponta em "Dias de Nietzsche em Turim", filmado há mais de 20 anos, quando começava a se tornar um rostinho conhecido na Globo.
"O Bressane tem um entusiasmo pela vida e pelo cinema, e tudo isso transborda no set", comenta a atriz que está nas telinhas como a Condessa de Barral na novela "Nos Tempos do Imperador". "A gente tem que se jogar. Eu fiquei muito focada em desfrutar desse exercício de experimentação", afirma Ximenes, feliz por retomar a parceria.
Bastaram algumas semanas de ensaio, com leituras do texto no apartamento de Bressane, aliadas a uma série de pinturas, para encontrar o tom cínico da personagem. E nem mesmo entrando na cabeça dela Ximenes consegue intuir se houve traição ou não. "Prefiro ficar com o mistério."
No lugar dos takes repetidos à exaustão, Ximenes conta que foram pouco mais de dez dias de gravações -e raramente se fez mais de um take.
"Fiquei surpreso quando um não deu certo, e o Bressane veio pedir desculpas", relembra Vladimir Brichta, que faz o alucinado Bentinho. "A gente tem que trabalhar com o risco do primeiro take dar certo. Isso coloca a gente em um lugar muito precioso."
Por mãos que já conduziram Guará Rodrigues e Fernando Eiras, o ator mineiro constrói, literalmente, o "Homem Desesperado" de Gustave Courbet em cena. As gravações foram em 2019 e Brichta ainda não viu o filme pronto, mas ficou contente ao saber que uma improvisação sua -que envolve a distorção de um violino- está no corte final.
"Eu penso o cinema como uma grande herança da pintura de ateliê, que era feita por muitas mãos", sintetiza o diretor. "Você tem que deixar espaço para que todas se unam, isso é o conjunto do fotograma."
Muitos, aliás, já pintaram nos seus estúdios -Alessandra Negrini, Josie Antello e Marjorie Estiano são apenas alguns dos nomes que brilham nos últimos longas -sem falar da luminosa Helena Ignez nos trabalhos de 1970, e cuja prole está aqui, com Djin Sganzerla fazendo Sancha, mulher de Escobar -Saulo Rodrigues.
Uma atitude como a de Bressane parece ir contra o tempo. "Estamos em um momento amuso, contrário às musas", lamenta Bressane a respeito da condução da cultura no país -e não é de hoje. "Essa ideia de arruinar vem desde Canudos", aponta, em referência à guerra ocorrida na cidade baiana no final do século 19, sugerida de relance em "Capitu e o Capítulo".
"Eu não sei se isso tem fim. É uma situação de horror", comenta, lembrando o incêndio em julho em um galpão da Cinemateca. "Mas não é por isso que se possa desistir de coisa alguma."
Durante a pandemia, Bressane -agora em visual diferente, com uma barba e bigode cheios, qual os retratos do são Jerônimo que ele mesmo levou ao cinema- tem frequentado a sala de edição à procura de seu mastodonte com o montador Rodrigo Lima. Falamos de "A Longa Viagem do Ônibus Amarelo", que deve somar mais de cinco horas.
Cenas de 54 filmes seus vão ser confrontadas numa "imagem ideogrâmica e dialética" com registros de uma viagem nos anos 1970 ao lado de sua mulher, Rosa Dias, e do amigo e cineasta Andrea Tonacci, morto em 2016, por sete meses entre Londres, Veneza e Katmandu, no Nepal.
A parte final do longa já está pronta e traz as últimas gravações de Bressane -em Paris, em fevereiro de 2020, pouco antes da Covid-19 se espalhar pelo mundo. Esse trecho se chama "A Peste" e deve evocar menos Albert Camus que o assustador "Fausto" de Murnau, clássico de 1926.
Ele conta que não trata os filmes como reminiscências, mas como um material de outro autor -qual as imagens sobreviventes em "Capitu". Bressane não quis se aprofundar em como recuperou e preservou esses tesouros pessoais -"foram salvos pelo destino", diz-, mas que seja uma oportunidade de conservar sua obra sem condescendência.
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