O cinema mostra resistência de várias formas. Em meio a pandemia, salas comerciais tentam voltar a abrir com o público tímido e o cinema independente mostra suas cores no streaming. A saída encontrada pelos produtores foi certeira e é onde o 27º Festival de Cinema de Vitória, que acontece de 24 a 29 de novembro, se apoia em 2020. Mas a resistência também é levada na representatividade.
No total, o festival apresenta neste ano 84 filmes, 21 deles dirigidos exclusivamente por mulheres. Segundo a organização do festival, se levados em conta os projetos feitos em parceria, metade da seleção total do festival possui mulheres na direção.
A Mostra Competitiva de Longas, principal prêmio do evento, foi tomada por elas. Das seis indicações, apenas uma é preenchida por homem. "Curiosamente, a única obra assinada por um homem, Pureza, conta com uma mulher forte como protagonista. Um personagem que luta contra o trabalho escravo", destaca o jornalista e jurado da categoria, Gustavo Cheluje.
Uma das obras selecionadas é "O Livro dos Prazeres", primeiro longa de ficção de Marcela Lordy. O filme é uma livre adaptação da obra Uma Aprendizagem ou Livro dos Prazeres, de Clarice Lispector, uma das mais importantes escritoras em língua portuguesa do século XX.
"A Lori é uma mulher que busca autonomia numa sociedade patriarcal. A Clarice escreveu essa história há 50 anos. É curioso que 50 anos depois a gente volte com estas questões. O longa tem um paralelo inclusive com a minha própria história, o meio do cinema é muito masculino. Durante todos este anos - a ideia de produzi-lo surgiu há 10 anos - fiquei nesse embate de realização e autonomia. É curioso que esse filme represente um processo de conclusão. Eu me encontrei fazendo ele", disse a diretora na 44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, no último dia 28, onde o filme foi exibido pela primeira vez. O festival também foi realizado de maneira virtual.
Já a Mostra Nacional Competitiva de Curtas, mais longeva e tradicional atração do evento, traz metade dos filmes com mulheres na direção em sua 24ª edição. Das 20 obras selecionadas, nove são dirigidas exclusivamente por mulheres, e uma tem direção mista.
Os números são um ótimo sinal para o cenário cinematográfico, que sempre foi dominado pelo gênero masculino. Segundo o Instituto de Cinema SP, entre as 100 maiores bilheterias norte-americanas de 2018, apenas 8% tem diretoras no comando.
"Em outras funções, algumas estatísticas deixam ainda mais a desejar, mulheres assinam apenas 10% dos roteiros, 2% das direções de fotografia, 14% das edições e 24% como produtoras. Já entre as 250 maiores bilheterias de 2017, as mulheres representaram apenas 3% do total de membros das equipes de filmagem", diz trecho de texto publicado pelo órgão.
"O nosso audiovisual está passando por uma fase de ruptura e transformação, com obras cada vez mais voltadas para denúncias sociais. O olhar sensível e observador da mulher faz diferença, neste momento de retomada', analisa Gustavo Cheluje.
Claudiana Braga, uma das diretoras indicadas na Mostra de Curtas deste ano, diz que o cenário para as mulheres no cinema é realmente desafiador, mas que, ao mesmo tempo, está melhorando aos poucos.
"Há uma ideia de que os homens foram criados para serem confiantes, e as mulheres para serem submissas. As relações nas filmagens são complicadas, porque alguns homens têm essa armadura, não aceitam o direcionamento e a ordem de uma mulher. Mas ao mesmo tempo, a situação vem melhorando. Os Festivais têm que continuar abrindo espaço para as mulheres, como o Festival de Vitória que possui uma mostra dedicada exclusivamente a mulheres."
A diretora é responsável pelo documentário "O tempo e a falta". A obra aborda a relação do idoso com a solidão e tem ligação com as vivências da própria diretora com os avós que a criaram. Todo o processo de produção foi feito pela artista, desde as filmagens à edição. O trabalho solitário, segundo Claudiana serviu para ela se sentir mais confiante quanto a elaboração de um filme.
Para Lúcia Caus, diretora do Festival de Cinema de Vitória, a busca por diversidade está presente nas indicações e também no leque de narrativas exibidas. Na este ano, foram selecionados 23 filmes de realizadores negros e negras; 21 filmes dirigidos por mulheres, sendo 10 dirigidos por mulheres negras; 33 filmes com temática de diversidade sexual; e 02 filmes realizados por pessoas com deficiência; além de 22 filmes universitários.
O Festival busca a cada ano ampliar a diversidade de narrativas tanto nas mostras temáticas quanto nas mostras tradicionais do evento. Acabamos de fechar uma parceria com a Mostra AudioTransVisual para exibir 17 filmes de realizadores transgêneros. Com relação a participação das mulheres, os 21 filmes se referem às obras exclusivamente dirigidas por mulheres.
Das 12 mostras do Festival de Cinema de Vitória, quatro são dedicadas à diversidade: a 10ª Mostra Quatro Estações, com produções que abordam a temática da diversidade sexual; a 5ª Mostra Mulheres no Cinema, sessão com filmes dirigidos exclusivamente por mulheres e que aborda as questões de gênero, valorizando a atuação feminina por trás das câmeras; e a 5ª Mostra Cinema e Negritude, com filmes produzidos exclusivamente por realizadores negros e que tratam das narrativas que atravessam a população negra no Brasil.
Lúcia Caus diz que, apesar dos desafios serem grandes para a cultura, o cenário em relação à diversidade vem avançando. Se levarmos em conta o levantamento da Agência Nacional do Cinema (Ancine), divulgado em 2018, tendo como base os 142 longas-metragens brasileiros lançados comercialmente em salas de exibição no ano de 2016, que apontava que mulheres só assinavam a direção de 19,7% dos filmes lançados naquele ano, podemos acreditar que a representatividade feminina no audiovisual começa a mudar.
E, mesmo diante do cenário de corte de recursos, a diretora acredita na própria força daqueles que trabalham com a cultura: O setor cultural sempre foi feito de luta. A cada nova edição do festival, por exemplo, a gente batalha por apoio, patrocínio, editais. São 27 anos de batalha, porque a gente acredita que a cultura, ao lado da educação. São peças transformadoras de uma sociedade. É na cultura que a gente se reconhece enquanto nação.
Neste ano, a vibração calorosa das plateias do Festival terá de ser à distância. A pandemia da Covid-19 e suas exigências sanitárias levaram o Festival a se reinventar. Neste ano, o evento será on-line, e as mostras transmitidas através da InnSaei.TV, uma plataforma de streaming que, abriga filmes e séries e permite a transmissão de eventos, mostras e festivais.
Para assistir os filmes da edição deste ano é necessário fazer o cadastro na plataforma. Cada filme ficará disponível por 24 horas e as exibições serão gratuitas. O 27º Festival de Cinema de Vitória acontece entre 24 e 29 de novembro. Para conhecer a programação completa do Festival acesse o site do evento. Confira a lista de filmes selecionados aqui.
*Vinícius Zagoto é aluno do 23° Curso de Residência em Jornalismo da Rede Gazeta, sob orientação do editor Erik Oakes.
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