Um dos nomes mais celebrados da literatura brasileira – e autor de obras decisivas, como "Grande Sertão: Veredas" (1956) – Guimarães Rosa, além de (grande) escritor, também atuou como diplomata, chegando a ser vice-cônsul do Brasil em Hamburgo (Alemanha) de 1938 até 1942, época em que o Nazismo, maior movimento de extrema-direita da história, estava no auge.
Esse momento decisivo na vida do autor é o epicentro narrativo do documentário capixaba “Outro Sertão” (2013), dirigido por Adriana Jacobsen e Soraia Vilela e produzido por Beatriz Lindenberg, do Instituto Marlin Azul. Premiado na Mostra de Cinema de São Paulo e no Festival de Brasília, o filme será exibido gratuitamente nesta quarta-feira (27) e quinta-feira (28) pela plataforma Sesc Digital.
Antes das projeções, Soraia Vilela e Adriana Jacobsen participaram da live "O Holocausto e a Atuação de Guimarães Rosa na Alemanha Nazista", que serviu para marcar o Dia Internacional em Memória das Vítimas do Holocausto, relembrado nesta quarta-feira (27). O bate-papo foi transmitido pelo Facebook do Consulado de Israel em São Paulo.
“Outro Sertão” é um retrato intimista e necessário sobre uma época pouco lembrada da vida de Guimarães Rosa. Em um dos momentos mais sombrios da humanidade, Rosa, ao lado da companheira, Aracy de Carvalho, ajudaram dezenas de judeus a migrarem para o Brasil, fugindo dos horrores e da perseguição do Nazismo.
Em um vasto e bem-vindo processo de pesquisa, o filme traz trechos de cartas, contos e anotações em off que revelam as impressões pessoais do autor sobre esse momento histórico. Documentos inéditos (alemães e brasileiros) e testemunhos de judeus que fugiram para o Brasil por Hamburgo, ajudam a recriar a experiência do diplomata na Alemanha dominada por Hitler.
Realizado após mais de dez anos de pesquisas na Alemanha, Brasil, Israel e Portugal, o "Outro Sertão" também acerta ao registrar a relação do autor com a cultura alemã desde a infância. O documentário traz uma entrevista inédita de Rosa – que chegou a ser investigado pela Gestapo (a polícia nazista) por seu “comportamento impróprio” – para a TV alemã, gravada na década de 1960. Até então, não se tinha conhecimento de praticamente nenhuma imagem em movimento do escritor.
Em conversa com A Gazeta, a realizadora capixaba Adriana Jacobsen afirmou que Guimarães Rosa encontrou brechas na legislação para viabilizar a vinda para o Brasil de judeus perseguidos pelo regime nazista.
"Nós fizemos um longo trabalho de comparação entre as listas de imigração dos diferentes consulados na Alemanha e conseguimos detectar, por exemplo, que o consulado de Hamburgo emitiu pelo menos 96 vistos, enquanto o de Berlim negou todos os pedidos. Havia uma pressão muito grande para evitar a entrada de judeus em nosso país", acredita. Abaixo, leia trechos do bate-papo.
Esse filme foi fruto de uma pesquisa de mais de dez anos. A codiretora (Soraia Vilela) e eu, na época, morávamos na Alemanha. Soubemos da existência dos “Diários de Guerra” (ainda não publicados) nos arquivos da UFMG. São anotações de Guimarães Rosa sobre o seu cotidiano na Alemanha nazista. Tivemos acesso às cartas para a família que ele escreveu de Hamburgo. A partir desses diários, saímos em busca de vestígios que o escritor eventualmente tivesse deixado em sua passagem pela Alemanha. Nos impressionava que tão pouco se sabia sobre esse período da vida dele, afinal, tinha morado no país entre 1938 e 1942, como vice-cônsul durante o regime nazista.
Descobrimos um material inédito inestimável. Acabamos encontrando ainda viva uma das personagens do conto “O Mau Humor de Wotan”, do livro “Ave Palavra”, que inclusive desconhecia ser uma personagem em um conto de Guimarães Rosa. Descobrimos um dossiê da Gestapo sobre o autor brasileiro. Ele foi espionado por anos. Também encontramos sua única entrevista em vídeo, afinal, Guimarães era bastante avesso a entrevistas. Esse material era de ótima qualidade e foi filmado em uma emissora de TV alemã. Reunimos mais de 100 horas de material filmado e milhares de documentos. Acabamos por dividir o filme em capítulos, para abarcar melhor a experiência de Guimarães Rosa como estrangeiro e diplomata na Alemanha. A nossa hipótese era que a experiência dele durante a Segunda Guerra tenha sido fundamental para a publicação de suas obras, especialmente “Grande Sertão: Veredas”, que é um livro sobre uma guerra no sertão.
Ele encontrou brechas na legislação para viabilizar a vinda para o Brasil de judeus perseguidos pelo regime. Trabalhou em conjunto com a segunda esposa, Aracy Moebius de Carvalho, que era funcionária do consulado. Nós fizemos um longo trabalho de comparação entre as listas de imigração dos diferentes consulados na Alemanha e conseguimos detectar, por exemplo, que o consulado de Hamburgo emitiu pelo menos 96 vistos, enquanto o de Berlim negou todos os pedidos. Havia uma pressão muito grande para evitar a entrada de judeus no país, até porque a propaganda nazista no Brasil era muito forte e diversos diplomatas e políticos estavam alinhados com o pensamento racista e antissemita. Tivemos acesso a correspondências de diversos consulados e era impressionante como a maioria dos representantes brasileiros propagavam abertamente o antissemitismo. Nesse contexto, Guimarães Rosa foi de extrema importância, não só porque salvou vidas, e o filme mostra diversos desses sobreviventes, mas também porque nos mostra que, mesmo em situações adversas, é possível agir de acordo com a sua consciência.
Quando começamos o filme, não sabíamos bem a sua posição política. Sabíamos que ela adorava a Alemanha, por sua cultura e literatura, e que estar em Hamburgo era um sonho realizado. Foi um alívio perceber que o escritor logo notou o que se passava no país e não se deixou influenciar nem pela máquina de propaganda nazista, nem pelos colegas diplomatas. Ele agiu dentro de suas possibilidades, mas sempre na tentativa de facilitar a fuga dos perseguidos pelo nazismo. Uma pessoa pode fazer uma diferença imensa, mesmo agindo “na penumbra”, como ele mesmo dizia.
O filme estreou em Berlim no festival internacional Doku.Arts, no cinema do Museu Histórico Alemão, com ampla divulgação pela imprensa. Desde então, tem sido apresentado em diversos festivais e mostras. Guimarães Rosa, assim como Borges, Asturias e outros, fez parte do chamado do "boom" da literatura Latino-Americana na Alemanha nos anos 1960. Hoje, seus livros se encontram em antiquários e ele é conhecido por um público bem especializado. Uma nova tradução para o alemão de “Grande Sertão: Veredas” (assinada pelo tradutor Berthold Zilly) está para sair em breve, o que provavelmente irá transformar a recepção da literatura de Guimarães Rosa em língua alemã e despertar um novo interesse por ele.
É essencial que a história do Holocausto seja relembrada constantemente. A memória é como uma matéria viva, ela precisa de atenção para não morrer. O historiador judeu Joseph Haym Yerushalmi lembra que é impossível viver sem esquecer. Então, se precisamos tanto lembrar quanto esquecer, onde deveríamos traçar a fronteira? É importante que haja um consenso na sociedade do que deve ser lembrado, para que o passado não se repita e para que possamos nos reconhecer no passado, aprendendo com ele. Uma sociedade que aposta no esquecimento dilapida seu futuro e fica sujeita a todo tipo de propaganda nociva ao bem-estar comum.
É um avanço muito perigoso, como todos sabemos. O "ovo da serpente" está sempre chocando e a democracia é uma luta diária. O passado não se repete de forma idêntica, mas há dinâmicas que são parecidas e que podemos identificar, por isso é tão importante conhecer a história. No caso do Nazismo, a propaganda foi utilizada de forma nunca vista, havia avanços tecnológicos, rádio e cinema que permitiram uma difusão dessa ideologia política. Era como o Reino das Fake News. Me parece, nesse sentido, que as novas tecnologias trazem esse perigo, a disseminação de falsas informações para pessoas ainda pouco preparadas para lidar com esses novos meio de informação.
Isso remete a outro dado importante, que me surpreendeu durante a pesquisa. O Brasil foi um país prioritário para a propaganda nazista, especialmente devido a sua significativa colonização alemã. Tem documentos que mostram o quanto o ministério da propaganda gastava com a produção de folhetos e jornais por aqui. É inclusive um tema muito interessante para pesquisadores futuros. A Alemanha passou por um processo de 'desnazificação', o Brasil não. É uma matéria para reflexão, inclusive se levarmos em conta a grande influência dos descendentes de alemães e italianos nas Forças Armadas.
Estou com um projeto para finalizar. Trata-se de um média-metragem em parceria com Margarete Taqueti e com produção do Instituto Marlin Azul. O filme remete a um descobrimento arqueológico em São Mateus. É um documentário sobre o esquecimento a que estamos sujeitos e a necessidade de recuperarmos vestígios para contarmos a história para as futuras gerações.
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