Antes de qualquer juízo de valor sobre suas qualidades técnicas, é preciso fazer um parênteses em relação a Sócrates (que está em cartaz nos cinemas do Estado): trata-se de um dos filmes mais viscerais, humanistas e emblemáticos do cinema brasileiro desde Cidade de Deus (2002).
Os dois filmes têm muito em comum. Ambos, por exemplo, fazem uma radiografia seca, quase naturalista, de adolescentes perdidos em busca de afirmação social. Sócrates também é produzido por Fernando Meirelles, mesmo diretor do longa que recebeu quatro indicações ao Oscar em 2003.
Passado o impacto que é assistir ao drama de estreia do promissor Alexandre Moratto, o cinéfilo mais atento pode captar as várias referências que o realizador usou para a construção narrativa de Sócrates. Há elementos do cinema social de Louis Malle, como a busca pela sobrevivência de Adeus, Meninos (1987), ou mesmo as citações mais óbvias, como François Truffaut com Os Incompreendidos (1959), especialmente na contestação social de seus arcos dramáticos.
Há, também, um flerte com Moonlight (2016), com a mesma transformação por que passa um homem negro, pobre e gay em busca de suporte afetivo. Sócrates, porém, é mais seco e menos poético do que a obra de Barry Jenkins.
A trama do longa de Moratto é simples. Sócrates (Christian Malheiros, excepcional) se vê perdido após a morte repentina da mãe. Sem emprego, dinheiro, lugar para morar e nenhum aporte familiar, ele precisa enterrar a matriarca, começar a trabalhar e aceitar a sua sexualidade.
Tudo, claro, embalado por uma cidade de Santos sombria, opressora e de poucas oportunidades para o recomeço. Uma sociedade retrógrada, conservadora e marcada pelos machismo, homofobia e racismo. Quase que uma radiografia do Brasil atual, comandado por uma extrema-direita raivosa e disposta a aniquilar as conquistas sociais das minorias.
Em bate-papo com A GAZETA, Alex Moratto falou sobre a experiência em retratar um anti-herói marcado por tantas mazelas. Tive muito orgulho em fazer esse filme e retratar pessoas que raramente são representadas nas telas. O que mais falta no mundo é empatia, filosofa, complementando a resposta em tom humanista.
Com esse filme, acredito que criamos empatia tanto em frente da câmera, quanto por trás, na forma que produzimos a obra com jovens de situações periféricas.
Sócrates é um projeto praticamente amador. Foi rodado com poucos recursos, com atores e técnicos recrutados na ONG santista Instituto Querô. Por isso, talvez, a trama seja impregnada por verdades, pois foi criada por quem realmente vive os dilemas da periferia.
A paixão do diretor pelo social vem de longa data. Trabalhar com o instituto foi muito gratificante, porque fui voluntário quando tinha 19 anos. Sempre tivemos um sonho de fazer um filme juntos, numa oficina para os jovens, e encontramos o perfeito projeto para essa parceria, explica.
O longa-metragem traz um intimismo que reflete a formação artística do próprio Moratto. Filho de pai americano e mãe brasileira, Alex imprime em Sócrates um pouco da identidade que conquistou trabalhando como assistente de direção em Hollywood.
De Ramin Bahrani, com quem trabalhou no excelente Adeus (2008), por exemplo, vem a busca de um homem querendo se encontrar em uma sociedade que não está disposta a aceitá-lo.
Sócrates surpreendeu ao receber três indicações ao Independent Spirit Awards (2019), o Oscar do cinema independente, feito que só duas produções brasileiras conseguiram: Central do Brasil (1998) e Cidade de Deus (2002).
O projeto foi ainda mais além, vencendo na categoria Someone to Watch Award, voltado para jovens promessas do cinema independente que merecem ser conhecidos.
O longa de Moratto não teria a mesma força sem a presença magnética de Christian Malheiros (que concorreu ao Spirit ao lado grandes nomes de Hollywood, como Ethan Hawke e Joaquin Phoenix). O garoto, que também é destaque na série Sintonia, da Netflix, hipnotiza somente pelo olhar.
As cenas em que confirma a sexualidade do protagonista - na companhia de Maicon (Tales Ordakji) -, ou mesmo a sua angustiante busca por comida, são cruas e filmadas com maestria pela câmera observadora do jovem realizador, que está trabalhando em seu novo projeto: Sete Escravos, sobre o tráfico de pessoas.
Trabalhar com Christian (Malheiros) foi especial porque ele tem um talento impressionante, mas, acima de qualquer coisa, a escuta dele é excepcional, sabendo transformar direção em ação. Ele tem treino no teatro, então trabalhamos para fazer a interpretação chegar ao ponto que é vista na tela, revela Moratto.
Ah, sim: você deve estar imaginando que o nome do personagem é Sócrates apenas por conta de uma homenagem ao famoso jogador do Corinthians e da Seleção Brasileira nas décadas de 1970 e 1980. Na verdade, é muito mais do que isso.
O famoso filósofo grego de mesmo nome defendida que as pessoas só conseguem viver melhor após avaliarem o seu interior. Só assim, poderiam conseguir a desejada paz. A jornada em busca de dignidade do personagem de Malheiros passa por isso...
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