O rapper Baco Exu do Blues tentou captar parte do sentimento da quarentena em um EP surpresa, só com faixas inéditas, lançado nesta segunda (30). No trabalho, chamado "Não Tem Bacanal na Quarentena", ele recupera canções de amor e rimas sexuais pelas quais é conhecido e também fala sobre temas atuais, do novo coronavírus ao "Big Brother Brasil".
Gravado em estúdio caseiro e em três dias, o EP exala espontaneidade e reflete as circunstâncias e o período em que foi feito. Mesmo amarradas por um conceito -e com a capa com referências ao coronavírus e ao rapper americano Notorious B.I.G.-, as nove faixas curtas soam mais como reunião despretensiosa de ideias do que uma obra fechada. É uma fotografia da mente do rapper numa época de isolamento e crise na saúde.
"Não Tem Bacanal na Quarentena" também chega para amenizar a espera dos fãs de Baco pelo terceiro disco do rapper. "Bacanal", gravado no ano passado, seria lançado no começo deste ano, mas acabou atrasado devido à pandemia. O álbum dará sucessão a "Esú", sua estreia em disco, de 2017, e "Bluesman", de 2018, que o projetou a um público mais abrangente.
Confira um faixa-a-faixa de "Não Tem Bacanal na Quarentena".
Tendo o racismo como plano de fundo, Baco rima sobre ser bem-sucedido aos 24 anos -algo raro num país onde a mortalidade de jovens negros é mais alta. Entre graves secos e robustos e gritos ao fundo, ele se diz um "negro caco de vidro" -"se tentar pisar, encho o chão de vermelho". Batuques com som de panela começam a aparecer e vão desembocar na faixa seguinte.
O rapper baiano resgata os vocais doces da cantora 1LUM3, que já cantou com ele no hit "Me Desculpa Jay-Z", de "Bluesman". Esperançosa, a faixa é uma tentativa de acalanto em termos de incerteza.
Baco dispensa o medo de morrer e diz que tudo vai dar certo, enquanto um sample de panelas batendo -em um dos melhores instrumentais do EP, assinado pelo duo DKVPZ- e gritos de "fora, Bolsonaro" surgem na parte final. Os panelaços contra o presidente vêm acontecendo de maneira consecutiva durante o período de quarentena.
Baco ficou conhecido, entre outros atributos, por canções de amor heréticas e melódicas, incluindo "Te Amo Disgraça", de "Esú", "Me Desculpa Jay-Z" e diversos singles que ele soltou nos últimos anos. A esta altura, as músicas sobre amor e sexo soam quase como repetição de fórmulas na obra do rapper.
Em "Ela É Gostosa pra Caralho", ele abusa de frases prontas para cantar sobre um amor proibido, em que a amante não consegue deixá-lo mesmo não podendo ficar com ele. Sons tímidos de gemidos permeiam toda a faixa, no que pode ser outra referência a Notorious B.I.G., que gravou barulhos de sexo no interlúdio "Fuck Me", do clássico disco "Ready to Die" -o mesmo a que Baco faz referência na capa.
Na canção de amor da quarentena, Baco lamenta a abstinência sexual e a impossibilidade de encontros no isolamento. Ele rima por cima de um violão dedilhado e as batidas lentas de trap -marca da produção de Nansy Silvvs, que retorna nesta faixa depois de ter participado de "Esú"-, repetindo o título da música no refrão. "Quarentena está deixando todo mundo louco/ Só quero trocar ideia e te dar um pouco", canta Lelle, que participa da faixa.
Outra com produção de Nansy Silvvs, a faixa traz Baco admitindo que sente medo da violência, que o "olha com sede". Aqui, há mais uma possível referência a Notorious B.I.G., um dos principais MCs do rap americano nos anos 1990 e que foi morto a tiros. Em estrofe curta, ele diz que sua cabeça vale prêmios e que se sente ferido por ser perseguido. "Gostar da cultura não te faz preto/ Você ter dinheiro não te torna branco", canta.
Em outra faixa curta, com pouco mais de dois minutos, o rapper retoma a imagem do sol e da pele negra, que ele já havia trazido em "Queima Minha Pele", de "Bluesman". "O sol mais quente deixa tudo mais claro, mas eu continuo escuro", canta no refrão.
Baco recicla flows antigos em um instrumental percussivo, conforme cita a pandemia do novo coronavírus. "Coronavírus me lembra a escravidão/ Brancos de fora vindo e fodendo com tudo."
Em uma das faixas mais interessantes do EP, Baco abre espaço para Celo Dut, Vírus e Young Piva, MCs de seu selo, o 999. Com versos curtos, soa quase como um interlúdio, mas serve para apresentar os rappers parceiros a um público mais amplo.
Trap com toque oriental em que Baco fala sobre Babu, ator e um dos participantes do "Big Brother Brasil". Negro e morador de favela, Babu ganhou notoriedade no programa -bastante visto e comentado na quarentena- por, entre outras coisas, falar sobre racismo. Baco se posiciona ao lado do participante e resgata um sample com uma fala do ator no programa em que ele diz: "O que foi a escravidão? O que são as favelas? Você ainda se espanta com o mundo?".
O áudio da rapper americana Cardi B alertando sobre a ameaça do coronavírus -que já virou música e inspirou memes e vídeos internet afora- vira sample repetido durante quase toda a faixa, produzida por JLZ. "Trabalhadores na rua/ O papa é pop, quarentena é pop/ Cardi B fez mais que o presidente/ Porra, amo o hip-hop", ele canta.
No fim, áudios de WhatsApp -de pessoas no Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro, na cracolândia, em São Paulo, e em outras regiões--retratam a situação de desigualdade de quem precisa continuar trabalhando em meio ao isolamento devido à pandemia. A possibilidade de fazer a quarentena é apresentada como um privilégio social.
Notou alguma informação incorreta no conteúdo de A Gazeta? Nos ajude a corrigir o mais rapido possível! Clique no botão ao lado e envie sua mensagem
Envie sua sugestão, comentário ou crítica diretamente aos editores de A Gazeta