"Uma câmera na mão e uma ideia na cabeça". O mantra, defendido pelo mestre do Cinema Novo, Gláuber Rocha, virou exemplo a ser seguido na produção audiovisual do país por um bom período, especialmente nos anos 1960 e 1970. Capixaba, o realizador Lucas de Jesus aposta na antiga fórmula, somando-lhe uma receita "caseira", o conceito de "cinemas possíveis".
Mas, em que se consiste o tal "cinemas possíveis"? Com a ajuda de Lucas, vamos explicar. "Pouca grana para produzir um filme, buscando apoio de financiamento coletivo, a ajuda de colegas do setor ou mesmo seguindo projetos de desenvolvimento audiovisual, como o Lab Cines, da Bahia", adianta o diretor de 28 anos, natural de São Mateus (Norte do ES), que conseguiu a proeza de gravar dois curtas-metragens em plena pandemia da Covid-19: "Quantos Mais?" e "Sob a Luz do Entardecer", ambos rodados em Salvador, onde reside atualmente.
"Quantos Mais?" é protagonizado por Wesley Guimarães (o saci da série "Cidade Invisível", da Netflix). De forte cunho social, o curta usa a violência para abordar o racismo estrutural do Brasil.
"É sobre um rapaz que estuda Sociologia e que trabalha de garçom para pagar a faculdade. No dia em que recebe o 'canudo' (diploma), a polícia confunde o objeto com uma arma e, por ser negro, é assassinado", explica, dizendo que seu curta-metragem pode suscitar acaloradas discussões.
"Em alguns casos, o preconceito policial contra os negros é muito forte. Alguns chegam a tratar negros e brancos sob diferentes abordagens. Quando a gente anda na rua, ou mesmo entra em um supermercado, sentimos essa diferença. Às vezes, vejo alguns policiais como uma espécie de capitão do mato, os homens que perseguiam os escravos. Afinal, muitos PMs no Brasil também são negros."
"Quantos Mais?" - cuja história está sendo roteirizada para virar um longa (Lucas não para!) - já está finalizado. O realizador começou a inscrevê-lo em festivais pelo país. "Vejo esses eventos como uma vitrine para o nosso trabalho. Em 2020, um curta que dirigi, "Eu Não Sou Branco, Eu Sou Preto", ganhou fôlego com os festivais, divulgando o meu nome no setor".
Por falar no projeto, "Eu Não Sou Branco...", um videoarte em que Lucas de Jesus aparece pintado com uma tinta branca - uma espécie de metáfora para a falta da visibilidade dos negros nas artes e na sociedade - levou o trabalho do capixaba para o exterior.
"Com o filme, participamos de um festival na Inglaterra, em duas oportunidades. Também exibi em mostras no Rio de Janeiro e na Bahia", empolga-se.
A pandemia da Covid-19 está no epicentro narrativo de outro trabalho que vem sendo finalizado por Lucas, "Sob a Luz do Entardecer". Rodado em meio ao avanço do novo coronavírus no Brasil, o curta mostra os dilemas de uma médica (vivida por Daniele de Souza) exausta por trabalhar na linha de frente do combate à doença.
"Gravamos em um prédio, em Salvador. Essa profissional, todos os dias, chega em casa exausta, às vezes até se culpando por não conseguir salvar vidas. Desesperada, chega a pensar em suicídio", adianta, afirmando que o curta tem a ideia de fazer uma análise psicológica de médicos e enfermeiros em momentos de crise.
"Daniele (a atriz) também trabalha na área de saúde. Ela me garantiu que esses profissionais, por exaustão, acabam morrendo 'aos poucos', em dilemas emocionais", lamenta.
"Sob a Luz do Entardecer" acabou de ser rodado no final de março e está passando por processo de finalização. Lucas de Jesus também espera lançá-lo no circuito de festivais.
Afirmando espelhar-se nos trabalhos de Spike Lee ("Malcolm X") e dos brasileiros Zózimo Bulbul ("Alma no Olho") e Joel Zito Araújo ("Filhas do Vento"), três vertentes do cinema negro, Lucas confessa que seu amor pelo audiovisual começou desde a adolescência, quando resolveu sair de casa (em São Mateus) em 2010, aos 16 anos, para tentar a sorte.
"Fui morar em Ouro Preto (MG) para estudar Artes Cênicas. Lá, acabei fazendo um curso de cinema, onde comandei o meu primeiro filme, 'Sinfonia de Ouro Preto'. Após receber um convite, parti para o Rio de Janeiro de modo a trabalhar em uma produtora, a Criative Produções. Tive contato com grandes cineastas, como Luiz Carlos Lacerda ('For All - O Trampolim da Vitória') e Neville d'Almeida ('Navalha na Carne'), dois mestres. Com Neville, dividi a direção da série 'Diamante Negro', que retrata a vida dos garotos que trabalham nos metrôs e trens do Rio. Foi uma experiência fantástica", relembra.
E no Espírito Santo? Lucas de Jesus não chegou a trabalhar por aqui? "No ano passado, com a pandemia, resolvi passar um tempo em São Mateus. Fiz uma série, em 30 episódios, chamada 'Minha Arte de Viver'. Trabalhei apenas com artistas e moradores locais, usando recursos próprios, praticamente sem dinheiro. Até tentei uma verba com a Prefeitura Municipal, mas não obtive sucesso. Fiquei dez anos fora da cidade e pensei que os órgãos públicos começaram a olhar a cultura mateense com mais carinho. Me enganei, pois, o desamparo infelizmente continua", aponta, com uma franqueza que parece lhe ser peculiar.
Questionado pela reportagem se não procura leis de incentivo cultural para desenvolver seus projetos, como a Lei Aldir Blanc, ou mesmo editais de audiovisual desenvolvidos pela Secretaria Estudual de Cultura (Secult-ES), Lucas é taxativo.
"Sou meio nômade. Não fico muito tempo em um lugar, estou onde o trabalho está. Em pouco tempo, gravei em São Mateus, Rio de Janeiro e Salvador. Esses editais, normalmente, precisam que você more e atue por um certo período em um determinado lugar. Prefiro seguir a minha teoria do 'Cinemas Possíveis'. Essa é a minha grande paixão e, de forma coletiva, chego lá", complementa.
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