Cláudio Jorge experimentou a fama cedo. Logo depois de lançar seu primeiro disco, na década de 1980, pela antiga gravadora Odeon, do Rio de Janeiro, ele explodiu no Brasil e chegou aonde chegou hoje: 50 anos de carreira e um Grammy Latino de Melhor Disco de Samba com "Samba Jazz de Raiz" (2019). Mas desde aquela época, que remonta quase aos anos dourados da música brasileira, o preço que o sucesso rápido cobrava não encheu os olhos do sambista de 70 anos.
Na Odeon vi que alguns sacrifícios precisavam ser feitos para se ter aquele sucesso. E isso não me atraiu. O pessoal trabalhou pesado no meu disco, eu viajava direto... Mas senti que aquele caminho não me levaria aonde eu queria chegar. E eu queria chegar aonde cheguei, agora. Esse espaço que estou é extremamente confortável, fala, em entrevista ao Divirta-se.
"Samba Jazz de Raiz", o disco que o fez vencer o Grammy Latino deste ano, também reflete um pouco dessa personalidade de Cláudio. A musicalidade que influenciou o disco começa nos grandes bailes dos anos 80, passando pela gafieira tradicional que se criou no Rio e chegando até nas parcerias mais recentes, com a nova safra do samba nacional.
Ganhar o Grammy representou um reconhecimento de um trabalho que já vem de longo tempo. Acho que neste CD eu explicitei mais a influência do jazz na minha música. Sempre fui considerado sambista, mas sempre recusei esse rótulo por respeito às pessoas que eu considero sambistas. Mas acho que ficou claro o quanto o jazz toma liberdade na minha música nesta produção, justifica, falando sobre o disco, que traz repertório completamente autoral.
O artista, além dos artifícios do jazz, também acabou lançando mão de elementos da própria gafieira e do sax, à época bastante popular nos grupos norte-americanos, para ilustrar as ramificações que sua música toma. No disco, em que ele explora todos esses aspectos, Cláudio Jorge também celebra a diversidade, combate a intolerância e, como bom cantor da MPB que é, alfineta o rumo político que o Brasil toma.
"Esse disco é uma retomada da minha linha, que começou lá no meu primeiro disco. Mostrei que a gente não tem que ter medo do que vem de fora para se misturar à música brasileira. Somos um país colonizado e a influência de fora é irresistível quando você ouve de tudo. Só temos que ter a certeza do orgulho das nossas raízes. Quis, também, transmitir uma mensagem política, contra a intolerância religiosa e valorizando o que o País pode ter de melhor", define.
Durante o bate-papo, o vencedor do Grammy Latino também adiantou projetos que toca em meio à pandemia da Covid-19, avaliou o atual cenário do samba no Brasil e detalhou suas intenções com o último disco lançado, em comemoração aos 50 anos de carreira e 70 de idade.
Representou um reconhecimento de um trabalho que já vem de longo tempo. Eu gravei meu primeiro disco na Odeon, em LP, em 1980... Foi muito bem recebido... E, sabe, tive outros discos indicados ao Grammy, então já disputei. A premiação veio agora, que acho que me localizei no meu rótulo, por continuar fazendo esse trabalho de muito tempo.
Acho que foi o CD em que eu explicitei mais a influência do jazz na minha música. Sempre fui considerado sambista, mas sempre recusei esse rótulo por respeito às pessoas que eu considero sambistas. Acho que ficou muito claro, mas de forma sutil, a presença do jazz na minha música. E toda a liberdade no samba de raiz, com minhas parcerias presentes no disco... Acho que isso pode ter chamado a atenção.
Esse disco, na realidade, é uma retomada na minha musicalidade, que começou lá no meu primeiro disco. É uma retomada dessa minha linha, como eu costumo brincar, antes de ter sido sequestrado pelo samba. Esse disco demorou cinco anos para ficar pronto, foi um trabalho artesanal, feito em forno de lenha, para ter tempo para elaborar tudo com calma. E quando eu encontrei o rótulo, eu comecei a organizar o repertório em função disso: samba e jazz raiz. E compus a faixa título, que eu falo dessa mistura toda, que foi feita especialmente para esse disco.
Acho que várias mensagens. Primeiro isso de que a gente não tem que ter medo do que vem de fora para se misturar à música brasileira. Não temos que ter medo disso. Somos um País colonizado e a influência de fora é irresistível quando você ouve de tudo. Mas que também devemos ter certeza e orgulho da nossa raiz, da nossa música. A outra mensagem que procurei passar é em relação à vida brasileira, de um modo geral, particularmente onde eu falo das minhas raízes religiosas e do contato que tive com todas as religiões. Tentando passar uma mensagem contra a intolerância religiosa. Mensagem política também tem.
Eu acho que isso aí realmente foi intencional. Quando eu falo samba jazz raiz, eu quero me referir a tudo de raiz. E a minha geração no Rio de Janeiro foi reduto do jazz, gafieira, instrumentos diferentes no meio das canções. Não foi saudosismo, não. É minha realidade. É a minha verdade musical. Essa história urbana de samba e jazz.
Eu fiz essa pergunta ao Martinho da Vila uma vez. Ele fez disco, sucesso no mundo... E ele disse Claro, quero fazer muita coisa. E eu digo a mesma coisa. Estou com alguns focos, já, que a pandemia atrapalhou. Estava em um processo de fazer um disco em homenagem a um grande compositor brasileiro que ainda não vou revelar (risos), mas que será continuado. Quero esse disco, quero tocar um outro projeto antigo sobre a música negra no Brasil... Essa também é uma meta.
Outro dia um jornalista escreveu sobre mim e ele disse que eu não pertencia ao streaming. Isso é uma coisa que eu nunca parei para pensar. Sempre me achei inserido dentro do mercado da música, gravei com muita gente por muito tempo, mas, realmente, é uma verdade. O sucesso é aquele lugar que você é sucesso ganhando ou perdendo. No Grammy, talvez, chamou a atenção o fato de alguns outros terem perdido, não de eu ter vencido (risos).
Você chegar ao sucesso parece que nunca acontece. Tem sempre um degrau na frente. O sucesso é muito relativo. O Grammy me chamou a atenção para várias reflexões e essa que você me colocou é uma delas. Agora, lá em casa, minhas filhas, meus amigos, o mercado da música, meus amigos artistas... Todos ficaram muito felizes. Essa premiação funcionou um pouco para o pessoal que não é do streaming, uma vitória do romantismo. Sempre fui assim, tocando minha carreira de forma paralela e esse espaço é mais difícil mesmo de você atingir grandes camadas, como o Grammy comporta. E eu tenho muita clareza disso e do papel que eu exerço na cultura.
Na (gravadora) Odeon, no início da carreira, vi que alguns sacrifícios precisavam ser feitos para fazer aquele sucesso que todo mundo queria. E aquilo não me atraiu. O pessoal trabalhou pesado no disco, eu viajava direto... Mas eu senti que aquele caminho não me levaria aonde eu queria. E eu queria chegar aonde cheguei. Esse espaço que eu estou, agora, é extremamente confortável.
Isso aí foi algo fundamental. Quando eu aprendi a tocar um instrumento, meu pai era violonista amador, então aprendi com ele e depois fui aprendendo sozinho. Mas no início eu não tinha uma visão bem definida e as coisas foram acontecendo. Quando eu comecei tinha baile, mercado de gravação... E esse sim eu queria (mercado de gravação), porque eu vi que tinha uma boa remuneração. Eu podia viver daquilo. E comecei. Estudei o mundo do samba e vi como ele funcionava. E aí comecei a tocar violão como acompanhamento e isso me abriu portas. Os contatos com as pessoas foram acontecendo e, como sempre fui compositor e cantor, os contatos iam se desenvolvendo e um chamava o outro.
Comecei com Martinho da Vila, toquei em shows e gravei com Beth Carvalho, compus com Cartola... Tudo gente que foi se agregando ao meu trabalho e eu fui agregando ao deles também. O violão é meu veleiro, como dizem no Partido Alto. Ele que me ajuda a navegar nos mares do samba e que abriu todas as portas para mim e que resultou nesse meu disco, samba jazz de raiz. Que é uma síntese de toda uma história, de tudo.
As pessoas hoje em dia estão com muito problema para se firmar profissionalmente, principalmente as pessoas do samba. Mas eles estão aí. Tem muito jovem que continua com essa herança... O samba é o lugar de fala do brasileiro, do negro brasileiro. Hoje tem o hip hop, o funk, que mostram esse poder, onde a expressão artística também é a expressão de suas necessidades.
O jovem sambista encontra um problema maior para resolver porque não se têm as facilidades de antigamente. Antigamente tinha um caminho. Era gravadora, rádio, disco... E por aí vai. Hoje em dia você grava tudo com toda a tecnologia, mas se você não tiver não sei quantos seguidores no YouTube, no Instagram... Não distribui. Ficou muito mais difícil. Em termos de criatividade, o samba está aí, está vivo. E samba é um modo de vida. Não é um ritmo. São Paulo, Rio, Espírito Santo também produz (samba) com muita qualidade... O samba está aí.
Minha ambição de deixar algum legado é de criar orgulho da nossa música, do que a gente faz. De transmitir uma mensagem que a gente tem que fazer o que a gente tem vontade de fazer, que a gente não deve seguir nem inventar fórmulas para nada, ser o mais natural possível, ouvir muita música de todo mundo do mundo inteiro... Principalmente isso. Procurar trabalhar para as pessoas, cultivar as verdadeiras amizades... Você tem que se dedicar a ser uma pessoa boa. Com isso, as questões profissionais vêm junto.
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