Mesmo com o exponencial aumento da produção - e publicação - de autores afrodescendentes no Brasil, especialmente em 2020, uma pesquisa divulgada pela Universidade de Brasília (UnB), analisando publicações das principais editoras do país entre 1965 e 2014, apontou que escritores brasileiros são, em sua maioria, homens (70%), brancos (90%) e paulistas ou cariocas (50% do total). Sob essa ótica, não surpreende saber que os protagonistas de suas obras soam como reflexos de suas vidas, pois também são, normalmente, homens (60%), brancos (80%) e heterossexuais (90%).
Neste contexto, a internet surge como foco de luta por voz e representatividade, um palco para escritores e escritoras negras mostrarem trabalho e revelar seu talento. Assim, o grupo Coletivo Palavra Negra (formado por Adriano Monteiro, Daiana Rocha, Janio Silva e Maicom Souza) está lançando uma websérie e um podcast para divulgar a literatura afro-brasileira produzida no Espírito Santo.
A websérie "Palavra Negra: Entrevista", como o nome sugere, é um programa de entrevistas reunindo cinco escritores e escritoras de diversos gêneros literários com exibição semanal pelo YouTube. Os dois primeiros episódios, com Marciel Cordeiro, sobre seu primeiro livro publicado, "Caminho para Texas", e Lavínia Cardoso, com a obra "Revolta do Queimado: Negritude, Política e Liberdade no Espírito Santo", estão disponíveis. A programação segue com mais três capítulos até 22 de outubro.
Paralelamente, acontece o programa "Podcast Palavra Negra", que traz um bate-papo com autores e autoras capixabas sobre produção literária e relações raciais. A exibição acontecerá no YouTube e também na plataforma Spotify. O primeiro episódio, com o escritor Wagner Gomes, já pode ser conferido. O segundo estreia nesta quarta-feira (6), contando com a participação do professor do Departamento de Ciências Sociais da UFES, Osvaldo Oliveira. Mais oito episódios serão lançados até 3 de novembro.
"Nossa ideia é sempre dar voz e privilegiar autores negros e de regiões periféricas. Fizemos uma seleção de pessoas que moram no Espírito Santo, pesquisando pela internet de maneira informal, e chegamos a 40 autores, um grupo que está produzindo e precisa de espaço para divulgar e debater o seu trabalho", adiantou Adriano Monteiro, um dos integrantes do coletivo Palavra Negra.
Entre os critérios estabelecidos para a seleção é a publicação de ao menos um livro. Nessa vertente, os projetos conseguiram abarcar diversos gêneros literários, passando pela poesia, contos, romance, ensaios e trabalhos acadêmicos.
Um dado, porém, mostra uma desigualdade preocupante. Dos 40 autores, 30 são do sexo masculino. O baixo número de mulheres (dez) confirma, além do conhecido racismo estrutural "enraizado" no país, a falta de diversidade da literatura afro produzida e terras capixabas, além de escancarar a dificuldade que escritoras negras possuem para publicar sua obra.
"Faz parte da engrenagem desse racismo estrutural perverso. A mulher negra, além de ser a que mais morre, a que menos tem acesso a trabalhos de qualidade e a universidade pública, também é a que mais tem dificuldade em ter acesso a políticas públicas culturais, como editais de incentivo, por exemplo", acredita Adriano.
"Um dos episódios do podcast vai colocar em pauta a dificuldade da mulher negra no Estado de entrar no mercado editorial. É uma discussão pertinente, pois temos que descobrir a origem desse problema. Será que as políticas públicas culturais não estão chegando até elas, nem que seja por algum erro de comunicação?", questiona.
Por falar nos podcasts, os debates vão revisitar autores negros pouco reconhecidos pelo grande público, mas de talento inquestionável, como Maria Firmina dos Reis, Lima Barreto, Carolina Maria de Jesus, Abdias do Nascimento, Solano Trindade e Carlos Assumpção.
"A internet nos proporciona dar maior visibilidade a esses nomes, registrando autores que vivem, ou viveram, à margem de uma literatura hegemônica. O negro não está presente no mercado editorial brasileiro. Como exemplo, tivemos o 'embranquecimento' de Machado de Assis por muitos anos. Na época, era a melhor forma de ele ser aceito pela intelectualidade branca que consumia suas obras", pontua Adriano Monteiro.
Nem só de história vive a série de programas on-line. Cada episódio da websérie conta com uma intervenção poética de slamers, como são chamadas pessoas participam de "batalhas de poesia" urbanas. Afronta, Ira, João Martins e Júpiter estão entre os convidados.
"É uma forma de expressão ligada à literatura que ganhou força no Estado a partir de 2016, com performances mais ativas, em formato de batalha mesmo. Temos até um campeonato anual por aqui, que conta com organização de John Conceito", complementa Monteiro.
Em tempo: entre os convidados da websérie, estão os escritores Douglas Freitas, Gustavo Forde, Larissa Pinheiro, Lavínia Coutinho Cardoso e Marciel Cordeiro. Para os podcasts, foram chamados Edson Bomfim dos Santos, Jhon Conceito, Juane Vaillant, Marcéu Rosário, Osvaldo Oliveira, Stel Miranda e Wagner Silva Gomes, além da participação de Adriano Monteiro e Janio Silva.
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