Esquecidas por boa parte da indústria cultural desde que o Sítio do Picapau Amarelo deixou a TV, as criaturas do folclore brasileiro ressurgem em filmes, livros e séries, numa tendência que tem despertado o fascínio do público, inclusive o estrangeiro, e gerado debates sobre apropriação cultural.
O maior expoente é Cidade Invisível, série da Netflix que põe cuca, curupira, saci e iara no centro de uma investigação policial. O projeto, o primeiro com atores de carne e osso de Carlos Saldanha, diretor das animações A Era do Gelo e O Touro Ferdinando, acompanha os passos de um fiscal ambiental, vivido por Marco Pigossi, depois que sua mulher morre de forma trágica num incêndio florestal.
A produção, que estreou em fevereiro, ficou entre as mais assistidas da plataforma em 40 dos 190 países em que foi lançada, o que lhe garantiu renovação para uma segunda temporada, ainda sem data.
No cinema, papa-figo e perna cabeluda, criaturas populares em Pernambuco, dão o tom à investigação sobre o desaparecimento de um rapaz em Recife Assombrado, em cartaz no Canal Brasil, outro que ganhará continuação.
Já na literatura, romances infantis e juvenis, antes inspirados pela cultura europeia e americana, agora incorporam o folclore nacional. É o caso de A Arma Escarlate, de Renata Ventura, protagonizado por um garoto que se descobre bruxo ao receber, durante um tiroteio numa favela carioca, o pombo-correio de uma escola localizada dentro do Corcovado e habitada por criaturas como o saci-pererê.
Lançado na Bienal do Livro de São Paulo há nove anos, o livro teve todos seus exemplares vendidos em poucas horas e já ganhou duas das cinco continuações planejadas.
Ainda inspirada por Harry Potter, há a trilogia As Aventuras de Tibor Lobato, de Gustavo Rosseb, protagonizada por dois irmãos órfãos que se mudam para o sítio da avó e lá conhecem boitatá e saci.
As semelhanças dos livros com a obra de Monteiro Lobato, aliás, não são coincidência. Foi ele, afinal, que popularizou o folclore, motivado por um forte sentimento nacionalista.
Lobato era muito briguento. Ele implicava que numa praça houvesse anõezinhos, que não tinham nada do folclore brasileiro, em vez de sacis e curupiras, diz Marisa Lajolo, uma das principais pesquisadoras da obra do autor, que leciona na Universidade Presbiteriana Mackenzie.
Hoje, essa tendência é liderada por artistas jovens, que poucos anos atrás eram influenciados pelo mercado a escrever sobre o mesmo folclore estrangeiro, de Harry Potter e Percy Jackson, os padrões de sucesso da época.
É o caso de Carolina Munhóz, 32, e seu marido, Raphael Draccon, 39, que começaram a publicar no final dos anos 2000. Ela escrevia sobre fadas e leprechauns, e ele, sobre dragões, até Carlos Saldanha encomendar a trama que originou Cidade Invisível.
Somos da geração que precisou provar que escritores nacionais poderiam competir com estrangeiros. Quem nunca ouviu alguém dizer que não gosta de livros ou filmes brasileiros? O preconceito pode ainda existir, mas não é mais consenso. Por isso, artistas brasileiros estão mais livres e aptos a contar histórias com elementos nacionais, diz Draccon.
Ainda assim, o casal, que vive em Los Angeles, nos Estados Unidos, diz que há uma preocupação para que as histórias despertem um interesse no público que vá além da nostalgia. A estratégia, avaliam, é recorrer às origens sombrias das criaturas folclóricas.
O público, que já conhece o folclore brasileiro, fica surpreso quando o vê desconstruído. Sempre que se modifica algo conhecido, isso chama atenção, diz Munhóz.
As mudanças, porém, podem gerar conflitos, já que algumas criaturas têm origem em crenças indígenas consideradas divinas. Ao ser lançada, Cidade Invisível, por exemplo, foi posta no banco de réus ao lado de obras menos populares e até de clássicos como Macunaíma.
Mário de Andrade deturpou crenças indígenas. O brasileiro se enxerga nele, mas o indígena vê sua crença na lama. É preciso ter responsabilidade com imagens que não lhe pertencem. Mas o que manda é o mercado. Não estão preocupados se alguém vai ficar chateado, ainda mais se for indígena. Falar de Maomé ou Jesus é terrível, mas de curupira não tem problema, porque é lenda, como se indígena não tivesse religião, diz o escritor Yaguarê Yamã.
O que para uns é uma tendência, para Yamã é a base de uma carreira. Aos 45 anos, 22 dos quais passou escrevendo, ele é autor de 30 livros, entre contos e romances infantis e adultos, além de dicionários e gramáticas, todos sobre seu povo, os maguarás, que vivem no Amazonas.
Suas reflexões ecoam nas palavras do antropólogo João Pacheco, do Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, que estuda cultura brasileira e memória indígena. Ele frisa, porém, que a cultura não é um conjunto de objetos em que se pode dizer o que é de fulano e o que é de sicrano.
Eu não conseguiria traçar uma diferença radical entre o que é puramente indígena e o que é concebido por indígenas com a sociedade brasileira. Tentar separar é legítimo num contexto político, mas a cultura ultrapassa isso, diz.
Eles citam como exemplo o saci, indígena, que ganhou interpretações diferentes, sem interferência do mercado, ao se espalhar pelo Brasil cafeeiro, e a cuca, de origem espanhola e portuguesa, que virou um jacaré loiro e, com ou sem vacina, trabalha como bartender numa ocupação da Lapa em Cidade Invisível.
Mesmo preocupado com a folclorização, Yamã diz acreditar que essas histórias podem desconstruir preconceitos contra indígenas.
A chave, segundo ele, é ter o bom senso de não ser desrespeitoso nem apagar as origens das crenças e contratar indígenas para tornar as produções representativas.
O povo é muito ignorante sobre a própria cultura. O folclore passou muito tempo esquecido, diz. Ainda acham que o indígena vive nu, e essas histórias ajudam a conscientizar [que não é isso é verdade]. Falta ao brasileiro olhar para o espelho e ver o indígena dentro dele."
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