Considerado o maior arquiteto brasileiro vivo, Paulo Mendes da Rocha, de 91 anos, é uma cabeça pensante e inquieta. Capixaba, sempre tem uma reposta certa "maquinando" em sua mente, pronta para ser disparada. Amante de projetos de cunho social, que dialogam com a educação, o bem-estar e o sentimento de territorialidade, foi classificado pelo exigente historiador italiano Francesco Dal Co como um profissional que despreza o supérfluo, com obras que possuem "segura racionalidade" e "essencialidade das soluções construtivas".
Nascido no Centro de Vitória, em 1928, Paulo Mendes da Rocha recebeu prêmios como o Pritzker, considerado o Nobel da arquitetura; o Leão de Ouro, em Veneza; e o Imperiale, no Japão. São de sua autoria, obras emblemáticas, como o Museu dos Coches, em Portugal; a Pinacoteca de São Paulo; o Museu da Língua Portuguesa, também na capital paulistana; e o estádio do Serra Dourada, em Goiânia (GO), inaugurado em 1975 e considerado por muitos anos o mais moderno do país.
Em passagem recente pelo Estado, Paulo conversou com A Gazeta para falar sobre os atrasos e os planos para o reinício das obras do Cais das Artes. Durante o bate-papo, o arquiteto relembrou momentos especiais vividos na capital capixaba durante a infância (ele saiu do estado ainda criança, indo morar com a família em São Paulo), debateu sobre a funcionalidade de suas obras e garantiu que não pensa em aposentadoria. Se parar um dia, vou curtir mais as belezas de Vitória.
Eu era muito jovem, com menos de 10 anos. Ficava na casa de um tio (o engenheiro Luiz Serafim Derenzi), que tinha filhos da minha idade: o Fábio, o Luiz Carlos e a mais velha, a Ione. Eles foram meus amigos de infância e me ajudavam a matar a saudade de Vitória, pois me mudei para São Paulo ainda criança. A turma morava na Rua Moacir Avidos, na Praia do Canto. Passava três meses das minhas férias escolares ali. Os meninos vivam descalços na praia e nadávamos até a Ilha das Andorinhas. A molecada passava o dia brincando. Era uma maravilha se aventurar nadando em mar aberto! A gente ia até onde hoje é o clube Ítalo-Brasileiro, uma farra completa (risos, de nostalgia).
Nadávamos juntos em grupos de três ou quatro, porque tinha muita arraia na região e era bem perigoso. Éramos muito amigos e tentávamos nos proteger durante essas aventuras (responde, parando para pensar novamente, com ares de nostalgia). Na época, eram cerca de 30 moleques nadadores. Lógico que ninguém tentava bater recordes, era só de brincadeira (risos), mas nadávamos mais de 300 metros. Não tinha pé de pato e nem nada. Tinha uma revista americana que mostrava como fazer máscaras de mergulhar caseiras. Fazíamos com rodas de bicicleta. Coisa de moleque (mais risos). Fazíamos ainda uma lagosteira para caçar lagostas e levar para a mãe cozinhar. Elas saiam vivas do mar (fala, com entonação de grandes feitos)! Esses instrumentos eram feitos com a roda de uma bicicleta. Uma delícia! (suspira) Ah, sim: tinha as matinês das férias!
Ia com os meus primos e amigos ao Cine Politeama, que ficava na Avenida República (onde mais tarde iria funcionar o Cine Santa Cecília, no Parque Moscoso). Todos os moleques da minha idade adoravam passar as tardes assim. Assistíamos aos filmes do Tarzan e combinávamos entre os meninos para brincar de beijar as garotas embaixo dágua, igual no cinema. Saia umas bolhas na hora do beijo (risos). Acho que faz parte da formação da sexualidade de meninos e de meninas. Nada de maldoso, só lirismo (suspira, com mais nostalgia).
Há uma estrutura diferente em cada gestão governamental. As grandes obras públicas sempre passam por esses entraves e têm os seus prazos ampliados. Um projeto ambicioso como o Cais das Artes quase sempre depende de um tempo de trabalho maior do que o prazo de uma administração pública, que, normalmente, é de quatro a oito anos. Questões burocráticas, como licitações de empreiteiras e compras de materiais, normalmente demandam muito tempo. O que importa é que vejo no atual gerenciamento governamental (sob o comando de Renato Casagrande) uma força de vontade para seguir com o projeto, o que é louvável. É importante continuar com a construção e tirar dela o incômodo rótulo de inacabada.
Foi uma iniciativa encampada pelo ex-governador Paulo Hartung. Tínhamos a ideia de investir em um teatro capaz de receber espetáculos de grande porte, como óperas, com todos os quesitos técnicos e físicos exigidos, como um fosso de orquestra, por exemplo. Se for feito de acordo com a ideia inicial, teremos uma estrutura capaz de acolher montagens sofisticadas. O teatro, por exemplo, deve contar com cerca de 1,3 mil lugares. Já para o museu de arte, meu objetivo sempre foi pensar no estímulo à educação. Não é necessário inaugurá-lo para abrigar acervos especiais ou grandes exposições. Temos o exemplo do MOMA, de Nova York, que está sendo reestruturado e investindo-se cada vez mais em projetos educativos.
É um trabalho que vai além da arquitetura. São necessários bons gestores culturais e administrativos, criando uma programação voltada para educar a sociedade de maneira mais ampla.
Acredito no trabalho coletivo. A arquitetura não se cria sozinha, só existe por conta da união de vários grupos de pessoas e de profissionais de diversas áreas. Portanto, toda a arquitetura é um trabalho social. Defendo uma forma de transformação da natureza para modificar um centro e criar nele um lugar habitável.
O Centro de Vitória vem sendo desvalorizado desde a época da colonização, quando a nossa Capitania Hereditária era vista como uma forma de defesa para o ouro e as pedras preciosas de Minas Gerais. Nosso mar imenso servia também para isso. Vitória, e o seu Centro, sempre viveu fases de transformações arquitetônicas voltadas para um caráter político. O objeto das nossas ações não podem ser somente o valor econômico que os centros das cidades podem oferecer. É necessário apostar no humano para definir valores e prioridades em cada região da cidade. É preciso acentuar a memória, o valor da história e nosso sentimento de liberdade. Nas áreas centrais, a nossa vida é livre e aberta, cheia de oportunidades.
Acho que depende mais das ações sociais do que da arquitetura. O centro precisa de incentivo e valorização das ideias. É necessário ter projetos que visam a abertura de teatros, cinemas, bibliotecas, escolas e cafés. A Universidade de Paris, por exemplo, é no centro da cidade. O conhecimento gira em torno daquele local. Acredito que as regiões centrais são grandes universidades de valores humanos. Como disse anteriormente, a cidade tem o poder de cultivar a liberdade. Quem cultua valores privados têm medo dessa liberdade e desse poder que emana do povo.
A melhor e mais marcante eu ainda não fiz e devo fazer em breve (responde, com um sorriso maroto, desconversando). Quero que as minhas obras falem por si. Cada projeto tem um valor social muito grande. É impossível medir.
Do novo projeto, quem participou foi meu filho, o Pedro Mendes da Rocha. Participei da primeira construção. Foi um trabalho totalmente voltado para a educação, cultura e ciência. Em relação aos novos trabalhos, tenho muita coisa sendo tocada, mas não posso adiantar. A minha rotina é não saber o que vou fazer amanhã. É preciso ter coragem para enfrentar a vida, que é sempre uma surpresa. Me perguntam se penso em aposentadoria, acho que não. Mas garanto que, se eu parar um dia, vou curtir mais as belezas de Vitória, mesmo morando muito bem em São Paulo.
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