Toda vez que você ouvir o jargão raaannn, pode esperar que lá vem bas-fond! Não entendeu, né? Calma, vou explicar, em partes. Raaannn é o cartão de visitas da travesti, funkeira e influenciadora digital Pepita.
O apelido é, na verdade, codinome da mulher trans Priscila Nogueira, de 37 anos. Carioca, suburbana com orgulho (nasceu em Marechal Hermes, Zona Norte do Rio), ela - que prefere ser chamada de travesti - ganhou fama na internet há quatro anos, após viralizar com um vídeo em que aparecia dançando funk.
Suas pernas musculosas chamaram a atenção e, por conta dos ataques homofóbicos que sofreu na ocasião, decidiu lançar-se como atuante dos direitos da comunidade LGBTQ+.
Daí para o sucesso foi um pulo. Priscila lançou-se como cantora de funk e gravou músicas de sucesso, marcadas pela irreverência e crítica social, como Tô à Procura de um Homem, Chifrudo (uma parceria com a drag Lia Clark) e Chama a Beleza.
Com mais de 700 mil seguidores nas redes sociais, lançou um programa no Instragram, Cartas para Pepita, onde recebe mensagens de pessoas com problemas sentimentais, familiares e em dúvidas sobre sua sexualidade. Abaixo, veja a participação de Cleo Pires no programa.
Na atração, Pepita dá dicas e conselhos de superação de preconceitos, também contando um pouco de sua história na busca pela dignidade LGBTQ+.Em nova fase, Pepita acabou de lançar uma versão em livro do programa, em que selecionou alguns dos comentários que mais chamaram a atenção dos internautas.
Em setembro,inclusive, esteve na Bienal do Livro do Rio de Janeiro para lançar Cartas para Pepita. No mesmo evento, o prefeito Marcelo Crivella mandou recolher os quadrinhos Vingadores - A Cruzada das Crianças, da Marvel, por trazer dois homens se beijando.
Em claro exemplo de censura às artes, também exigiu que colocassem sacolas pretas nas capas de todos os livros sobre diversidade sexual, na tentativa de esconder seu conteúdo.
Em bate-papo com A GAZETA, Pepita comentou a atitude de Crivella, mandando uma espécie de recado para o prefeito. Vivemos em uma democracia. Nossas batalhas e conquistas foram muito suadas até aqui. Movimentos retrógrados não podem ser permitidos, dispara, como se estivesse preparada para uma batalha. Ainda durante a conversa, Pepita falou sobre a carreira e direito da comunidade LGBTQ+.
Foi uma situação lamentável, mas nós somos resistência e gosto de ressaltar as coisas positivas, mesmo em circunstâncias de retrocesso. Nesta Bienal, a comunidade LGBTQ+ celebrou um momento importante. Pela primeira vez, o evento fez uma mesa para abordar a Literatura Trans, no intuito de celebrar a pluralidade. Estamos conquistando nosso espaço e ganhando voz, principalmente na internet, televisão e literatura. Nossas batalhas e conquistas foram muito suadas até aqui e ainda temos muito pela frente. Não podemos permitir que atitudes como a do prefeito mudem a nossa caminhada.
Acho que não só para os governantes, mas a base de uma sociedade saudável tem que passar pelo respeito. Sempre penso assim: o governo precisa ser o pilar desse comportamento. Não precisamos votar no mesmo partido, gostar do mesmo time de futebol, escutar a mesma música ou ter a mesma fé, mas precisamos aceitar as diferenças.
É levantar todo dia a bandeira da resistência e ter que mostrar meu potencial como artista e demarcar o espaço que conquistei. Também tento ser o apoio para pessoas que enfrentam o preconceito e têm menos voz. Uma mulher trans pode ser o que ela quiser. Precisamos ter travesti coach, advogada, empresária... A letra 'T' ainda assusta, mas precisam saber que temos a coragem de buscar o nosso espaço.
Acho que todas as histórias que compartilham comigo me levaram a esse caminho. A música e clipe de Chama a Beleza, por exemplo, criou um movimento de valorização e aceitação da própria aparência. Agora, estou lançando um clipe com a também funkeira Nininha Problemática, Quem Manda, em que celebramos a dignidade LGBTQ+. O clipe remete ao episódio histórico de Stonewall, a casa noturna que foi invadida pela polícia de Nova York, em 1969.
Costumo dizer que passei por uma metamorfose: primeiro veio a lagarta, depois um casulo e por fim virei uma linda borboleta. Assim foi a minha infância no Rio. Tenho a forte referência de minha mãe. Ela deu o meu primeiro sutiã (risos) e sempre apoiou para que eu me tornasse a mulher militante que sou. Meu pai e meus três irmãos também apoiaram a minha transição. Quando virei Priscila, minha irmã, que também é trans, virou Cadu. Somos uma família que nos apoiamos e nos respeitamos. Para os fãs, prefiro ser um ombro amigo em vez de exemplo. Acho importante eles saberem que sofri e ainda sofro preconceito. Ser famosa me dá visibilidade para expor esse tipo de situação e incentivar as pessoas a lutarem pelos seus direitos. Ser travesti é ser resistência.
As pessoas sempre gostaram de compartilhar comigo suas histórias, frustrações e experiências. Acho que meu jeito espontâneo de lidar com as situações da vida, e a forma leve com que mostro isso, atrai. Minha agência, a Mynd, tinha conhecimento sobre essa interação dos seguidores, que mandavam mensagens compartilhando histórias e pedindo conselhos. Assim nasceu a ideia do programa no IGTV. Tendo como base mensagens que recebo com diversas dúvidas, questionamentos e histórias, aconselho a galera e tento ajudá-los em seus anseios e medos. O sucesso do programa, que já recebeu mais de duas mil cartas, fez com que ele ultrapassasse as barreiras da internet, virando um livro. O projeto veio para somar forças e dar mais voz à comunidade trans.
Acho que mais do que ajudar a comunidade LGBTQIA+, o programa ajuda pessoas. Hoje o programa chegou a um patamar que alcançou um público maior que minha bandeira, desde jovens até mães, donas de casa, assistem e comentam o Cartas para Pepita. A mensagem de amor próprio e aceitação que transmito no programa é muito verdadeira, e é isso que as pessoas precisam escutar, com leveza e bom humor. Saber que temos que nos amar em primeiro lugar e que podemos alcançar nossos objetivos. Eu, por exemplo, ultrapassei barreiras, afinal vivemos em um sociedade onde a mulher trans muitas vezes não se sente amada, então não é comum falarmos de autoestima, em uma sociedade que muitas vezes nos marginaliza. Fico imensamente feliz em quebrar esse paradigma com Cartas para Pepita, e poder trocar experiências e conselhos com pessoas de várias idades e sexo. Também é uma responsabilidade muito grande, e que eu faço com muita dedicação.
Infelizmente o preconceito transita em todos os lugares. Mas eu acredito no poder da mudança, desde que lutemos por ela, e é assim que vejo o movimento LGBTQIA+ na música. Ganhamos nosso espaço porque estamos lutando por ele diariamente e seremos resistência. Precisamos de um país que respeite as diferenças, é simples, tudo está no respeito e nos direitos iguais para todos.
O Cartas vai estrear a terceira temporada em dezembro. Além disso, estou preparando a minha estreia no teatro, com um monólogo de tenta desmistificar a vida de uma travesti, dando caminhos para conquistar o respeito e a dignidade. Deve estrear no início de 2020. Também fui convidada para ser umas das protagonistas da série de animação Free Girls, na qual vou dublar uma super-heroína que atua no combate à homofobia e a crimes de ódio, ao lado de Cleo Pires e de MC Rebecca. A série será exibida no projeto Cleo On Demand, no IGTV da atriz. O projeto tratará sobre temas sociais como feminicídio, LGBTfobia, arte e cultura.
Notou alguma informação incorreta no conteúdo de A Gazeta? Nos ajude a corrigir o mais rapido possível! Clique no botão ao lado e envie sua mensagem
Envie sua sugestão, comentário ou crítica diretamente aos editores de A Gazeta