O papel, que se supõe um espaço democrático, onde todos podem depositar suas palavras pode não ser exatamente tão acessível quando se trata da publicação. No Mês da Consciência Negra, tendo o dia 20 de novembro como data oficial pela lembrança de Zumbi dos Palmares e sua luta, o debate sobre o racismo e a desigualdade racial entra em voga e nos lembra que o problema também perpassa a literatura.
Em pesquisa do Grupo de Estudos em Literatura Brasileira, coordenada pela doutora em teoria literária Regina Dalcastagnè, fica evidente a falta de presença negra no mercado. O estudo Personagens do romance brasileiro contemporâneo, da Universidade de Brasília, revela que, de um total de 197 autores analisados entre 2005 a 2014, 97,5% eram brancos, e, nas obras, apenas 22 de 414 protagonistas eram negros, no mesmo período. Tendo início em 2003, o estudo analisou 692 romances em três espaços de tempo: 1965 a 1979; 1990 a 2004; e 2005 a 2014.
Além dos dados da pesquisa citada, existem também outras evidências de que o mundo literário é dominado por brancos, deixando os de pele com mais melanina à margem. Quando olhamos para os membros da Academia Brasileira de Letras, logo se nota a falta da presença negra nas cadeiras da Instituição, assim como em bienais, a Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) e nas listas de selecionados prêmios de pterígio, como o Jabuti, a questão se repete.
Essas marcas de uma desigualdade racial enraizada são notadas pelos autores negros capixabas em diversas instâncias. Tem muitos lugares em que existe resistência para tratar da figura negra. É uma estratégia de racismo estrutural mesmo, comenta o autor Maxwell dos Santos.
Contra essa negação em abordar a história negra, a lei Nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003, tornou obrigatória o ensino da história e cultura afro-brasileira na rede de ensino do país, legislação que o escritor e professor de língua portuguesa Wagner da Silva Gomes afirma ser de grande importância.
Ultimamente, acho que tem sido bem falado nas escolas, mas tem que trazer uma coisa de dia a dia também, porque fica muito uma data às vezes comemorativa. Então, por exemplo, por que não toda semana alternar entre um autor negro e um autor branco, ou então cada dia de aula alternar?, sugere Gomes.
Os obstáculos se mostram também na divulgação, Wagner, que tem dois livros físicos publicados e mais dois e-books lançados, relata que sua obra de estreia Classe Média Baixa, de 2014, teve uma divulgação com bom alcance tanto na TV quanto em jornais, já em Nix: Microfones por tubos de Ensaio , de 2018, nenhum veículo de comunicação deu abertura para o título.
Normalmente fica muito restrito à divulgação da própria editora e a gente que divulga também, no boca à boca mesmo, as redes sociais ajudam bastante, explica Gomes, pontuando que essa falta de cobertura pode ser fruto também de um cenário político desfavorável às questões ligadas à igualdade.
Wagner também tem dois e-books publicados durante a pandemia, "Moço Velho ou um Areal do Belo" e "Coroa para Três Rainhas". Eles são gratuitos, mas os leitores podem fazer contribuições voluntárias caso queiram apoiar o escritor. Além desses, o professor está com a obra "Qual é o Esquema da Parada" em pré-venda pela editora Pedregulho.
Maxwell, que conta com 11 livros publicados, também comenta sobre uma falta de abertura na mídia, mas detalha: Não é nem pela questão da cor, é até pela questão da conjuntura que alguns espaços e programas não tem mais espaço para livros. O autor, no entanto, afirma que não existe nenhum tipo de ação afirmativa para compra de obras de autores negros, o que atribui a um pensamento meritocrático, ou seja, a ideia de que os que mais trabalham e se dedicam é que ganharão destaque.
As prefeituras e o Governo do Estado se limitam a viabilizar financeiramente a publicação do autor, mas elas não cuidam dos processos seguintes, que são a distribuição, a divulgação e a circulação, completa o escritor de O Aniversário Solidário de Cecília, o recém lançado livro infantil que conta com protagonismo negro. Maxwell também é autor dos livros: "As 24 horas de Anna Beatriz", "Ilha Noiada", "Os senhores da fome", "Comensais do Caos", "Ele era só um Garoto" e outros.
Já a poetisa e estudante de Serviço Social, Larissa Pinheiro, autora do livro "Janela da Alma", chama a atenção para uma resistência ao consumo da arte das pessoas negras. Tem muita gente que eu conheço que consome, mas a gente sabe que existe todo um racismo que atravessa toda a sociedade. E eu espero que criem mais políticas para divulgar autores negros, porque aqui no Estado existem muitos artistas, assim como eu, que merecem a valorização. A jovem escritora que começou a escrever aos 12 anos está desenvolvendo sua segunda obra de poesias, ainda sem data de publicação prevista.
Dentre os nomes capixabas negros, se destacam mulheres com a escritora e atriz Suely Bispo; a ativista quilombola e idealizadora do clube literário antirracista Pretaria Books, Mirts Sants; e a cantora, poetiza e atriz Elisa Lucinda. As duas primeiras participaram de um painel sobre a literatura de autoria negra no evento on-line 'Encontro das Pretas', na última terça-feira (24h).
Suely cita mais nomes que valem ser destacados quando o assunto é literatura negra no Espírito Santo: "Waldo Motta, escritor negro capixaba, reconhecido nacional e internacionalmente. Vera Viana, falecida em 2020, mulher negra, importante nome da nossa dramaturgia. Sempre falo o nome dela nas minhas palestras. Theodorico Boamorte, da Serra, com literatura de cordel. Vejam a web serie Palavra negra, ali dá para ver muita gente. O livro de Zacimbas a Suelys também traz muitas novas escritoras negras capixabas, livro organizado pela professora, doutora em Letras, Cibele Verrangia, nome importante para a literatura".
Para os três autores capixabas entrevistados, o dia da Consciência Negra é sinônimo de resistência e lembrança da luta diária contra o racismo. A literatura é a sua arma contra a violência. Fica abaixo uma lista de obras locais escritas por negras e negros, para que a sua estante possa ficar diversa. Já pensou em quantos livros de autoria negra você tem ou leu?
*Sarah Bichara é estagiária da Rede Gazeta, sob orientação do editor Erik Oakes.
A matéria foi atualizada com a contribuição da escritora Suely Bispo, informando nomes fundamentais da literatura negra capixaba.
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