Até pouco tempo atrás, não existia ficção brasileira no streaming. Foi só em 2016 que estreou a primeira série nacional numa grande plataforma "3%", uma produção da Boutique Filmes para a Netflix.
De lá para cá, o mercado só cresceu. A chegada e a expansão de novos serviços, como o Globoplay, o Amazon Prime Video e o Paramount +, aumentaram muito a demanda por conteúdo local. Praticamente todas as grandes produtoras de São Paulo e do Rio de Janeiro estão elaborando filmes e seriados para o streaming. Ao mesmo tempo, os canais pagos reduziram consideravelmente suas encomendas de ficção.
Ao contrário do que acontece com a TV paga, ainda não existe nenhuma legislação que obrigue as plataformas a oferecer um certo percentual de conteúdo brasileiro. Elas também não usam nenhum mecanismo público de financiamento - bancam as produções do próprio bolso, e ainda adquirem a propriedade intelectual delas, isto é, os direitos sobre esses produtos.
"Tem mais dinheiro no streaming", diz Andrea Barata Ribeiro, sócia e diretora-executiva da produtora O2. "E é uma delícia não ter que trabalhar com dinheiro público", continua ela, referindo-se aos constantes problemas na prestação de contas a órgãos como a Ancine, a Agência Nacional do Cinema.
Ninguém revela números, mas, de modo geral, um episódio de uma série para o streaming custa mais caro do que o de uma novela da TV aberta, que gira em torno de R$ 500 mil. Um dos motivos é o acabamento, que precisa ser caprichadíssimo. Mesmo tendo como alvo o público brasileiro, nas plataformas, o produto viajará o mundo inteiro, concorrendo com todo tipo de produção internacional.
No final, porém, a novela acaba saindo muito mais cara, pois tem cerca de 120 capítulos, enquanto as séries raramente passam dos dez episódios por temporada.
Uma vez donas do IP - sigla em inglês para propriedade intelectual -, as plataformas podem fazer o que quiserem com as séries. Refilmá-las no exterior, por exemplo, sem a participação da produtora original, ou mesmo trocar de produtora de uma temporada para outra. É raro, mas já aconteceu.
E como surgem essas produções? "Não há uma regra fixa", conta Caio Gullane, sócio da produtora Gullane Entretenimento. "Muitas vezes, é a produtora quem procura as plataformas, com uma ideia mais ou menos desenvolvida. Em outras, são elas que nos procuram com uma demanda específica". A Gullane, por exemplo, refez no Brasil a série francesa "Hard", a pedido da HBO.
Já para precificar um IP, entram no cálculo o conhecimento prévio de que desfruta o material de origem - se foi um livro best-seller, por exemplo, ou uma história em quadrinhos cultuada -, o currículo da equipe e o apelo internacional. No entanto, sempre se corre o risco de se pagar demais por um eventual fracasso.
"Há diversos modelos de contrato e os termos são definidos a depender de cada projeto", diz Ana Carolina Lima, chefe de conteúdo do Globoplay. "Normalmente temos os direitos preservados no resto do mundo, para que o Globoplay Internacional também possa ofertar o conteúdo brasileiro em diversos territórios."
Também é comum que atores ou escritores procurem diretamente as plataformas, sem estarem ligados a nenhuma produtora. Foi o caso da autora Natalia Klein, que ofereceu à Netflix um projeto de série. Uma vez aprovado, a O2 foi chamada, e o resultado é "Maldivas", ainda em filmagem, que tem Bruna Marquezine e Manu Gavassi no elenco e deve estrear em 2022.
Não é raro que as próprias produtoras adquiram os direitos de um livro, por exemplo, e se ofereçam para desenvolver um produto baseado nele. Hoje já existem no Brasil empresas especializadas em pôr projetos de pé, formando pacotes com o talento - como o mercado chama os atores -, os roteiristas e o diretor, e, às vezes, combinando produtoras diferentes.
"Nós somos facilitadores", afirma Gil Ribeiro, sócio da Coiote, uma dessas empresas. "Somos produtores focados em desenvolvimento. Procuramos ideias, showrunners, os nomes ideais para cada projeto. Não concorremos com ninguém."
Paula Cosenza, sócia do Ventre Studios, vai pelo mesmo caminho. "Não temos clientes, temos parceiros". Sua empresa só desenvolve os projetos, sem produzi-los. Eles fazem a bíblia, um manual da série, e os roteiros, mas as filmagens ficam a cargo de outras produtoras.
Desenvolver conteúdo para o streaming significa lidar ainda com outro dado novo: o algoritmo. As plataformas não divulgam números de audiência, mas, evidentemente, sabem o que fez sucesso e o que não fez. Na verdade, sabem até o ponto em que o espectador deixou de ver uma determinada série.
"A taxa de retenção é o mais importante no streaming", afirma Tereza Gonzalez, chefe de desenvolvimento de ficção pan-regional do VIS, o ViacomCBS International Studios. "Às vezes, uma série tem um 'ataque' muito forte, por causa de seus atores", prossegue ela, se referindo ao número de pessoas que se interessam pelo primeiro episódio. "Mas, depois, poucas veem até o fim."
As métricas usadas pelas plataformas servem para atenuar esse problema, mas não são infalíveis nem impositivas. "Existe uma lenda de que há uma máquina em que a gente joga um roteiro e ela diz quantas pessoas vão ver", afirma, aos risos, Adrien Muselet, diretor de filmes para o Brasil da Netflix.
"O algoritmo é só mais um dado para te orientar, como o Ibope para a TV aberta ou a bilheteria para o cinema. A decisão de realizar uma série ou um longa é 100% humana, e se baseia muito na intuição e na experiência do executivo."
"Conseguimos tomar decisões muito mais embasadas com esses dados [das métricas]", contrapõe Malu Miranda, chefe de conteúdo original da Amazon Prime Video no Brasil. "Quando percebemos que há uma lacuna no mercado, podemos encomendar aquilo para alguém, ou então surge uma ideia aqui dentro mesmo."
Como o mercado está aquecido, já existe escassez de mão de obra em todas as fases do processo. "Não faltam só roteiristas, mas também finalizadores, controllers [quem gerencia o processo contábil numa produção audiovisual] e até advogados especializados em entretenimento", diz Renata Brandão, CEO da produtora Conspiração.
Também faltam leis que regulamentem esse mercado. "Se não vamos ter apoio do governo, temos que nos organizar como indústria e exigir das plataformas os mesmos direitos que elas dão nos Estados Unidos e na Europa", afirma Renata Moraes, sócia da LB Entertainment - produtora que já foi mais convencional, sob o nome Losbragas, e hoje se define mais como uma desenvolvedora de projetos.
Não existem contratos de exclusividade entre as produtoras e as plataformas, mas algumas parcerias costumam ser longevas. Conspiração, Gullane e O2, que estão entre as maiores produtoras do Brasil, são fornecedoras habituais de todas as grandes plataformas.
"Uma conversa bem quente entre os produtores é o bônus por sucesso", acrescenta Andrea Barata Ribeiro. "Se uma série for bem, queremos ser melhor remunerados pelas temporadas futuras."
Para esquentar a discussão, várias produções brasileiras vêm fazendo sucesso no exterior. Adrien Muselet aponta o bom desempenho internacional de filmes como "Modo Avião" e "Tudo Bem no Natal que Vem", na Netflix. "Foi uma surpresa descobrir que existe uma audiência potencial muito grande lá fora para o nosso conteúdo", conclui ele. Ou seja - a briga promete ser boa.
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