Ouro Preto, Brasília e a cidade de Goiás têm em comum o título de Patrimônio da Humanidade, dado pela Unesco. A partir deste mês, algo mais as une: a gestão de seu patrimônio histórico foi entregue a profissionais sem experiência alguma no ramo.
É o caso de Jeyson Dias Cabral da Silva, que foi tesoureiro do Pros (Partido Republicano da Ordem Social) de Juiz de Fora (MG) em 2014 e também assessor do deputado federal Charlles Evangelista (PSL-MG).
Era cinegrafista da Câmara dos Vereadores de Juiz de Fora até o dia 25, quando foi nomeado superintendente do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional , o Iphan, em Minas Gerais, no lugar da museóloga Célia Corsino.
O estado abriga 60% dos bens tombados no país pelo instituto, que é vinculado ao Ministério da Cidadania, pasta comandada por Osmar Terra, desde a extinção do Ministério da Cultura.
Júlio Pimenta (MDB), prefeito de Ouro Preto, o também emedebista Juscelino Roque, prefeito de Diamantina, e o tucano José de Freitas Cordeiro, o Zelinho, prefeito de Congonhas, enviaram cartas a Osmar Terra pedindo a recondução de Corsino.
Mas a exoneração da servidora, que está no Iphan desde 1985 e foi responsável por chefiar a recuperação da igreja de São Francisco de Assis, que fica na Pampulha e é projeto de Niemeyer, não é um caso isolado.
Técnicos à frente das superintendências do instituto no Paraná, em Goiás e no Distrito Federal também foram trocados por nomes da base aliada.
O quadro se agrava com a redução orçamentária prevista pelo governo para a preservação do patrimônio histórico em 2020, que pode perder mais de 70% de seus recursos. A reportagem procurou o Ministério da Cidadania, que disse que não irá comentar indicações.
Em Mato Grosso do Sul, por exemplo, a decisão de trocar Maria Clara Mascarenhas Scardini por Eldo Elcídio Moro foi tomada e desfeita por Osmar Terra, em 24 horas.
Moro, servidor da secretaria sul-matogrossense de Direitos Humanos, Assistência Social e Trabalho é historiador especializado em artes na educação e gestão do trabalho pedagógico.
Scardini, arquiteta, foi diretora-presidente da Fuphan (Fundação de Desenvolvimento Urbano e Patrimônio Histórico) de Corumbá. Mulher de Paulo Duarte (MDB), ex-prefeito da cidade, ela foi exonerada em 18 de setembro e reconduzida no dia 19 ao cargo, que ocupava desde 2017.
O caso mais gritante, porém, é o da superintendência goiana, pela forma como teria sido a substituição da historiadora Salma Saddi pelo advogado Alysson Ribeiro e Silva Cabral.
Cabral era funcionário da Unifan (Faculdade Alfredo Nasser), pertencente ao deputado federal Professor Alcides (PP-GO). O jornal O Popular registrou, em texto publicado no dia 18, que o congressista afirmou ter ganho o direito a fazer a nomeação de Cabral num sorteio do governo.
Na publicação, ele dizia ainda que o cargo era de confiança e isso importava mais que a qualificação técnica. Após a notícia, o deputado negou as informações. O Popular respondeu divulgando um áudio.
Na gravação, um homem - segundo o periódico, o próprio deputado - diz: "O Iphan foi um cargo que foi sorteado para nós aqui. Quando foi feito o sorteio no governo federal dos cargos de Goiás, o que sobrou para mim foi o Iphan".
O gabinete do Professor Alcides disse à reportagem que o deputado não se manifestaria. Diante das declarações, o Ministério Público Federal em Goiás recomendou na quinta-feira (26) a exoneração de Cabral.
Entre as considerações do MPF na recomendação está o fato de que "as nomeações para cargos públicos, ainda que em comissão, devem observar os princípios constitucionais de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência", conforme o artigo 37 da Constituição. Mas não só.
A procuradoria também recorda que a nomeação contraria o decreto 9.727 firmado pelo próprio presidente Bolsonaro. O texto, de março, estabelece que cargos de direção e assessoramento superior, como as superintendências do Iphan, requerem que ocupantes tenham "idoneidade moral e reputação ilibada" e "perfil profissional ou formação acadêmica compatível com o cargo".
O troca-troca, porém, não é o único aspecto a pôr em dúvida o bom funcionamento do Iphan. Segundo o Projeto de Lei Orçamentária, o órgão sofrerá, caso haja aprovação no Congresso, uma das reduções de recursos mais drásticas da pasta da Cidadania em 2020.
O item que especifica valores para preservação de patrimônio e memória mostra redução de R$ 230.816.976 para R$ 66.509.432, uma perda de 72%. A área designada como Cultura no documento aponta redução de R$ 1,8 bilhão para R$ 1 bilhão (menos 45%).
O Iphan sozinho recebeu na Lei Orçamentária Anual de 2018 R$ 516 milhões, que aparecem diminuídos para R$ 304 milhões no projeto para o ano que vem. Desse total, a maior parte se destina a gastos administrativos. Para aplicação nos projetos de preservação, incluindo-se aqui 600 mil imóveis em sítios históricos, serão apenas R$ 56 milhões.
Para Jurema Machado, ex-presidente do Iphan, a redução orçamentária e a perda de qualidade no quadro da instituição podem resultar em paralisações de obras e projetos.
Ela explica que os recursos para execução de obras são liberados em parcelas de acordo com a execução anual dos restauros e preservações. "Há um banco enorme de projetos para execução", diz. "Se não houver perspectiva de cumprir nem sequer o que foi iniciado, não haverá também perspectiva de começar obras novas."
A arquiteta lembra que outro braço de atuação do Iphan é a preservação e salvaguarda de bens imateriais. Ela cita como exemplos a capoeira e as baianas do acarajé. A manutenção das atividades depende de ações educativas, que também exigem recursos. "É um orçamento muito apertado."
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