Lucas Rocha, de 28 anos, cresceu ainda entre resquícios de histórias que, na mídia, igualavam o HIV a uma sentença de morte, o "câncer gay", um "castigo de Deus" para os "leprosos dos anos 1980".
Rocha acreditava que 40 anos teriam sido suficientes para desmistificar o vírus. Até que, a pedido de uma revista parceira da Fiocruz, onde trabalhava como bibliotecário, revisou um estudo sobre a percepção dos brasileiros a respeito do HIV.
"As pessoas respondiam coisas como 'você pega Aids se usar o mesmo copo que uma pessoa com HIV', sem nem diferenciar HIV de Aids. Eu pensava que todo mundo sabia o certo e o errado, mas descobri que não."
Depois do choque, ele, que desde os 11 vive rodeado por livros, quis saber como o HIV era representado hoje na literatura. Não encontrou romances protagonizados por jovens soropositivos -e decidiu escrever o seu.
"A maioria dos livros que achei terminavam com solidão ou morte do personagem com HIV, tanto no Brasil quanto no eixo Estados Unidos-Reino Unido", afirma. "No meu, pessoas com HIV têm direito a um final feliz. Não me importo de dar este spoiler."
A primeira cena de "Você Tem a Vida Inteira" se passa num centro de testagem, onde Ian, que acabou de descobrir ter HIV, conhece Victor. Este fez o teste depois que Henrique, um ficante, ter revelado ser soropositivo.
Mesmo tendo usado preservativo no sexo, Victor decide romper com Henrique --ainda que, como explica o romance, por manter o tratamento em dia, sua carga viral fosse indetectável e, portanto, intransmissível.
O escritor desenrola a história a partir do que os três decidem fazer depois dos diagnósticos. Mesmo entre a comunidade LGBT, são cercados de personagens propositalmente preconceituosos, para que o leitor questione as próprias concepções.
"Uma pessoa com HIV não é melhor nem pior que ninguém, não é uma 'praga humana', não é promíscuo -e, se for, não é da conta de ninguém", diz Rocha. "É importante termos narrativas contemporâneas sobre HIV no Brasil."
A percepção do escritor encontraria eco longe de São Paulo. Seu romance acabaria chegando ao escritor David Levithan, diretor editorial da Scholastic, casa de sucessos como "Harry Potter" e "Jogos Vorazes".
Em sua vinda à Bienal do Livro de São Paulo de 2018, Levithan, que também escreve livros com temas LGBT, havia consultado sua editora brasileira, Rafaella Machado, sobre o que ela havia publicado de interessante nos últimos meses. Machado indicou "Você Tem a Vida Inteira".
"O preconceito é hoje o que há de mais grave sobre o HIV", diz ela. "O Lucas trouxe isso para uma história adolescente, que tem romance, plot twist, um final apoteótico e uma mensagem superpositiva. Disse ao David que ele precisava ler esse livro de qualquer forma."
Levithan decidiu levar uma cópia para um editor de sua equipe que lê em português, Orlando dos Reis. Nascido no Brasil e criado nos Estados Unidos desde os quatro anos, ele pegou o romance num final de semana e se apaixonou na primeira página.
Enquanto lia, arriscou traduzir os primeiros capítulos do livro para apresentar ao chefe na segunda-feira seguinte. Fisgado, Levithan deu aval para a compra dos direitos autorais em inglês.
Em junho, mês do orgulho LGBT, "Where We Go From Here" foi lançado nos Estados Unidos, onde só 3% dos livros publicados são originais de língua estrangeira, segundo pesquisa da Universidade de Rochester.
O estudo foi realizado em 2007, mas ainda reflete o mercado literário americano, diz Reis. "Admito que nunca havia pensando em comprar livros estrangeiros -não por achar que fossem ruins, mas por não ser treinado a fazer isso."
Exceto pela diminuição de idade dos personagens, por estratégia de marketing, e da troca de referências à TV brasileira, o texto permaneceu o mesmo, conta o editor, que diz ter aberto os olhos para o que é escrito mundo afora.
A segunda aposta de Reis já está feita. Escrito pelo também estreante Vítor Martins, "Quinze Dias" chega às livrarias dos Estados Unidos em novembro, protagonizado por um adolescente que enfrenta gordofobia na comunidade gay.
Enquanto isso, Lucas Rocha aguarda o lançamento de "Where We Go From Here" no Reino Unido em 2021, pela DFB, e prepara seu próximo livro, sobre a relação entre um jovem gay e seu pai preconceituoso. A história é triste, mas o final é feliz, garante o autor.
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