O olhar passa a ser a janela da alma. Atentas, usam agulhas, linhas e tecidos para contar seus dilemas e dissabores, resgatando memórias, felicidades, dores e sentimentos da vida cotidiana. Trabalhando de maneira calma (quase contemplativa), como se não sentissem o passar das horas e dos dias, as bordadeiras de Burarama (distrito de Cachoeiro de Itapemirim) acabaram se tornando necessárias para a preservação da cultura local.
Muito conhecidas na região sul do Estado, o grupo Meninas Bordadeiras de Burarama, sob este nome, completa 16 anos em 2021, mas o projeto de ensinar bordados à comunidade começou em 1973. Hoje, o grupo - que possui 40 costureiras em encontros semanais em vários pontos do distrito - conta com mulheres de todas as idades, dos cinco aos 70 anos.
Valorizadas, as bordadeiras ganharam uma exposição virtual e um livro, de autoria de André Fachetti e idealizado pela Caju Produções. O evento, batizado de "1ª Mostra de Bordados & Memórias de Burarama", acontece no Instagram até o final de maio, expondo 38 bordados do grupo.
A obra literária, que ganhou o título de "Bordei", deve ser lançada também neste mês e promete trazer bordados e histórias de 34 bordadeiras. O "Divirta-se" aproveitou o futuro lançamento para conversar com três das profissionais que serão retratadas no livro.
Pode parecer exagero, mas, realmente, a agulha e a linha são "confidentes" dessas mulheres. Elas usam o delicado trabalho manual para registrar emoções, dores, amores, sonhos e tristezas, e sempre se emocionam ao falar sobre a labuta. Por isso, segue um convite: vamos "bordar" juntos enquanto contamos esses "causos"?
Bordadeira de mão cheia, Gabriela dos Santos Regini, de 28 anos, tinha um sonho: ser mãe. Afirmando fazer parte do grupo desde os 11 anos, ela vê nos bordados uma forma de "marcar lembranças da vida", incluindo sua ânsia de maternidade.
"Comecei a fazer bordado em 2015 e dar à luz era o meu desejo maior na época da concepção do desenho (há cerca de cinco anos). Estava ansiosa e pensei em fazer um trabalho relacionado a isso", sorri, de maneira tímida.
"Quis costurar passagens importantes, como a ida à maternidade e uma mãe feliz, em um jardim, embalando o filho. Observe que meu desenho não tem uma linha indicando o fim. Isso significa que essa história continua", declara, revelando a resposta que você deve estar ansioso para saber.
"Sim, hoje sou mãe de três filhos lindos, Ana Laura, Samuel e Gilmar e me sinto muito realizada por isso. Essa emoção está contida no bordado", revela, não escondendo as lágrimas.
Fique calmo, pois vem mais emoção por aí, agora com sabor de saudade. Marina Gava Ferreira, de 22 anos, borda desde os 17. Com olhos vibrantes e sorriso largo, a moça, no projeto do livro "Bordei", optou por fazer uma arte em homenagem ao irmão, morto há sete anos. Vindo do trabalho, ele sofreu um acidente de moto que tirou sua vida.
"O bordado me ajudou a superar essa perda, essa saudade imensa que sinto. Bordei as memórias que tenho do Mateus, que foi embora muito cedo, com apenas 18 anos", relata, entre uma lágrima e outra.
"Representei no desenho coisas que ele gostava, como praticar a cavalgada. Era vaidoso, usava camisa xadrez, botina, chapéu... Todos os objetos ele que usa no desenho tenho guardado até hoje", confessa, relatando que usa o bordado para "ocupar a cabeça" e ter boas recordações do passado. "É uma forma de acalentar o coração e espantar a saudade que não quer ir embora".
Pensa que acabou? Claro que não! Agora, vamos contar a história de Mariângela Fassarella, que, aos 67 anos, é uma das mais influentes bordadeiras do grupo.
Seu bordado, na verdade, é a "continuação" (homenagem) do trabalho da mãe, Anna Perim Grillo, que morreu aos 87 anos em 2016, semanas após terminar sua obra, uma das selecionadas para integrar "Bordei".
"Represento o trabalho de minha mãe, uma das fundadoras do grupo. Ela foi uma forte influência para mim e para todo o distrito de Burarama. Sua paixão fez com que seguisse pelo mesmo caminho de bordar", rememora, com emoção.
Mariângela confessa que, apenas após a "partida" da mãe, soube que Dona Anna tinha concluído o bordado.
"Uma sobrinha me avisou semana depois. Ela fez um desenho emocionante, pois retratou a própria vida. Sempre foi uma mulher dedicada à família. Não à toa, fez uma árvore, com fortes raízes fincadas na terra. Também vejo sua infância, brincando livre entre os quintais da casa em momentos de aconchego familiar ao lado das irmãs", afirma, revelando com felicidade que sua filha, Fernanda, de 36 anos, também segue pelos caminhos do bordado.
Autor do livro "Bordei", André Fachetti explica seu processo de criação. "Fiz uma série de entrevistas com a grande maioria das bordadeiras. As que não pude conversar, estavam muito afastadas ou já tinham falecido. Esses momentos tiveram um nível de profundidade muito grande, inclusive para as bordadeiras mais jovens. Nenhuma, por incrível que pareça, se fez tímida durante a abordagem e isso se reflete também na coragem de bordar", acredita.
"Sejam as mais novas, com histórias mais recentes, às vezes mais suaves, mais sutis, ou sejam as bordadeiras mais experientes, às vezes com histórias de vida muito doídas e profundas, todas tiveram a ousadia de se expor nos bordados".
De acordo com Fachetti, as memórias contadas são variadas. "Tem a história da infância, da adolescência e da fase madura. Há, também, relatos de decepção e de conquistas. Durante as entrevistas, muitas admitiram que só descobriam o significado dessas histórias depois que bordavam. Então, os bordados eram chaves também pra emoções, pra sentimentos e memórias", complementa.
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