De tempos em tempos, um artista consegue produzir algo tão tocante que o mundo inteiro parece se voltar para ele. É o caso do quinto disco de Fiona Apple, "Fetch the Bolt Cutters", que acaba de ser lançado e pôs imediatamente os críticos de rock e pop de joelhos.
Com uma capa personalista -um close no olho esquerdo e no "sorriso de louca" de Apple -, o álbum de 13 músicas convida a entrar naquela mente e a habitar, por 51 minutos e 53 segundos, o universo que se esconde por trás daquela expressão facial perturbadora. Ela invoca uma dúvida -será que eu quero dar play e me envolver com essa pessoa?
Alguns dos maiores discos da música popular americana das últimas seis décadas trazem essa característica rara de ser uma obra da qual o ouvinte sairá diferente do que quando entrou. Se sairá melhor ou pior, bem, isso não é problema dela, mas seu. Apple só fornece a arma, a pólvora e o gatilho. O que mais se pode esperar de um artista?
"Fetch the Bolt Cutters", que poderia ser traduzido como alcance o alicate, diz respeito a destruir a prisão na qual você, ouvinte, se deixou ser inserido. "Seja uma prisão que você mesmo construiu, seja uma que tenha sido construída ao seu redor e você a aceitou", esclareceu ela, numa longa entrevista à revista Vulture.
"Fiona Apple está de volta e sem limites", cravou o New York Times, destacando três críticas que promovem discussões sobre "obra-prima ousada, catártica e desafiadora".
"Uma erupção gloriosa", pontuando cinco estrelas, e "um disco estranho e emocional", digno de quatro estrelas, foram as opiniões dos dois críticos do jornal britânico The Guardian.
O site Pitchfork deu nota dez. O perfil da revista New Yorker levava no alto da página a chamada "a arte de radical sensibilidade de Fiona Apple". E a masculina InsideHook aconselhou que o "novo álbum de Fiona Apple não é para homens, mas eles deveriam escutar assim mesmo".
"Fetch the Bolt Cutters" é só o quinto trabalho da nova-iorquina de 42 anos, com 24 desde seu primeiro lançamento, "Tidal", de 1996. No passado, quando artistas lançavam um ou dois álbuns ao ano, isso a faria ser considerada uma artista bissexta. Nas últimas décadas, porém, essa periodicidade maior tem se transformado no padrão da indústria fonográfica.
Parte do disco foi gravado no estúdio caseiro de Apple, em Venice Beach, um bairro de Los Angeles, na Califórnia, e, no caso de Apple, não há como dizer que esses hiatos não fazem bem ao seu trabalho. Não são músicas pesadas, com guitarras e gritarias, mas sim canções com clima mais intimista e lamentos, perfeitas para deixar os dias deprimentes da quarentena ainda piores.
Cantora Fiona Apple lança disco em meio à pandemia do coronavírus Reprodução Cantora Fiona Apple lança disco em meio à pandemia do coronavírus **** Mas, caso você não mergulhe de olhos fechados muito profundamente nesse lago negro e se emocione com boa arte sendo construída ao seu redor, essas canções podem, sim, deixar sua reclusão mais iluminada.
O álbum abre com "I Want You to Love Me", ou eu quero que você me ame, em português, já deixando claro que Apple tem coragem de escancarar seu coração em público. Um andamento delicado, ao piano, leva a um refrão minimalista e poderoso, que vai se tornando ainda mais minimalista e poderoso conforme avança. É possível dizer que a música principal segue o mesmo tom emocional.
"Shameika" traz uma visão das difíceis relações que teve na escola, com descrições das diversas formas como seus colegas se dirigiam a ela, seja fazendo bullying, seja elogiando. Mesmo a compositora não parece ter certeza em qual escaninho aquelas declarações deveriam ser arquivadas.
Um jantar chique estragado pela verborragia de nossa heroína é o tema de "Under the Table", conforme mostram os versos "me chute por baixo da mesa o quanto quiser/ eu não vou calar boca/ eu não vou calar a boca."
Em "Relay", ao criticar a vida aparentemente perfeita de pessoas certinhas, Apple escapa do clichê de ridicularizar diretamente os personagens para assumir, ao contrário, uma série de sentimentos negativos que sente por eles, como a inveja, o ressentimento e o rancor.
É nessa toada que seguem as 13 faixas de "Fetch the Bolt Cutters", um corajoso posicionamento de uma artista que não tem receios de expor suas fragilidades. Ou talvez ela tenha, mas, grande artista que é, não pode deixar de fazer bem isso.
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