"É filme ou é videogame?" Donos de olhos desavisados devem se fazer essa pergunta ao mirar um amontoado de pixels numa tela de televisão.
Alguns jogos recentes têm confundido os não iniciados com seus gráficos ultrarrealistas -é só dar uma olhada em lançamentos como "The Last of Us 2" e o ainda inédito "Cyberpunk 2077".
Mas tem gente querendo ir na contramão desse mainstream. Um dos hypes mais recentes, o simplíssimo "Among Us" mostra que há uma seara de poucos pixels a ser explorada -o que é muito bem-vindo num mercado de games jovem como o latino-americano, que ao poucos vai conquistando seu espaço.
Pegue o jogo chileno "The Signifier", por exemplo. A história gira em torno de um software que recria memórias de outras pessoas. Na trama, a casa onde uma personagem passou a infância é reconstruída digitalmente com ajuda de inteligência artificial. O resultado é um cenário onírico, nada realista, com proporções difusas, mutáveis e repleto de "glitches" -as "falhas" de programação, que nesse caso são intencionais.
Interessado em psicanálise, o diretor criativo David Fenner teve a ideia para o jogo há 11 anos. O projeto foi sendo tocado aos poucos, no tempo livre, já que todos da equipe tinham seus empregos "reais".
Fenner trabalhava em uma empresa de tecnologia e lá acabou tendo contato com uma técnica que deu a cara e a alma de "The Signifier", a fotogrametria -que consiste em criar imagens em três dimensões a partir de fotos, como o Google Earth faz.
Claro, sai mais barato um jogo ter gráficos mais simples, mas isso não deixa de ser uma escolha artística.
"Per Aspera" é um jogo argentino que simula a colonização de Marte e chega a lembrar "SimCity". Criado a partir de dados topológicos do planeta vermelho disponibilizados pela Nasa, o game aposta num visual minimalista, o que não o impede de ter uma direção de arte caprichada -um futurismo com pinceladas retrô.
"Nós entendemos a indústria de games e sabemos o que é alcançável -e tentamos tirar o melhor disso", diz Damian Hernaez, diretor do estúdio Tlön Industries.
No Brasil, o game "Psikodelya" tentou ser o menos realista possível. O jogo, em primeira pessoa, tenta reproduzir uma experiência lisérgica. Nele, o jogador caminha por cenários com cores e texturas absurdas, enquanto coleciona o que parecem ser cartelas de LSD.
"Se você tenta atingir um gráfico AAA [como são conhecidos os games blockbusters], pode acabar ficando meio tosco. A gente sabia que tinha que buscar um visual diferente, precisava ser algo bonito e chamar atenção. Então a alternativa foi ir para um visual mais surrealista", diz Tainã Oliveira, criador do game.
"Para fazer um jogo com qualidade gráfica [de última geração], você precisa de verba e equipe muito grandes, o que não é uma realidade no Brasil", afirma.
Isso não significa que só é possível fazer bons jogos se eles tiverem orçamentos astronômicos. "Nem todo filme precisa ser um 'Vingadores' para ser um bom filme ou para ser lucrativo", diz Pedro Zambon, consultor e pesquisador de games, fazendo uma comparação com a indústria cinematográfica. "A gente tem vários games aqui no Brasil que tiveram sucesso, boas vendas internacionais --e eles não precisaram competir com o 'Fifa', com o 'Call of Duty'."
Mas e se num futuro não muito distante o Brasil e seus vizinhos resolvam brigar com os pesos-pesados?
"A gente precisa pensar num longo prazo em que viabilize que daqui a dez anos a gente possa fazer jogos cada vez mais competitivos, para que títulos latino-americanos possam rivalizar com os grandes lançamentos internacionais."
Para a América Latina chegar até esse ponto, o caminho passa pelas políticas públicas de incentivo aos games, segundo Zambon. E a quantas anda a região?
No Brasil, dois importantes vetores de políticas públicas vinculadas ao governo federal passam por crises e cortes pela gestão Bolsonaro -a Ancine, a Agência Nacional do Cinema, e a Finep, a Financiadora de Estudos e Projetos. Muito visada pelo estúdios de games, a linha BNDES Direto 10, que financiava economia criativa e tecnologia da informação, foi suspensa no ano passado.
O Chile tem se alternado entre a socialista Michelle Bachelet e o liberal Sebastián Piñera na presidência na última década e meia. O game "The Signifier", por exemplo, recebeu dois aportes do governo local --um na era Bachelet e outro na era Piñera, o atual presidente. Além disso, recebeu apoio do governo para participar em 2018 da Tokyo Game Show, no Japão. Foi lá que tiveram contato com a Raw Fury, publisher de jogos eletrônicos que hoje os representa.
Segundo a associação Video Games Chile, a mudança de governos não representou descontinuidade dos auxílios para jogos. "Em geral as políticas públicas têm se estabelecido bem ao longo dos últimos oito anos, independentemente da administração", diz Guillermo Gómez Zará, do conselho da associação.
A Argentina recentemente trocou o liberalismo de Mauricio Macri por Alberto Fernández, ligado ao kirchnerismo. Por lá, a principal aposta da Associação de Desenvolvedores de Jogos, a ADVA, tem sido a Lei da Economia do Conhecimento, que está no Senado e pretende trazer benefícios fiscais a desenvolvedores de software do país, incluindo games.
A legislação deve substituir a Lei do Software, de 2004 -com duração inicial de dez anos, ela foi prorrogada por Cristina Kirchner e depois por Macri. Damian Hernaez, o criador de "Per Aspera", conta que chegou a ser recebido pelo ex-presidente Macri em seu gabinete.
No Brasil, Jair Bolsonaro já trocou afagos com sua base gamer nas redes sociais e, no ano passado, reduziu impostos sobre consoles e jogos de videogame.
A Abragames, a Associação Brasileira das Desenvolvedoras de Jogos Eletrônicos, destaca a Apex, a Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos, como tendo "contribuído imensamente" para que os estúdios de games daqui consigam acessar o mercado internacional.
Questionada sobre o diálogo com o governo federal, a associação, no entanto, diz que não há contato. Um dos acenos mais recentes da gestão Bolsonaro em direção à indústria dos games foi uma reunião do secretário Mario Frias com o filho do presidente, Renan Bolsonaro, de 22 anos. Em maio, o filho 04 foi banido da Twitch, plataforma de streaming de games, depois de dizer que o coronavírus é uma "gripezinha".
O cenário atual é de incerteza catapultada pela pandemia. Mas se os tempos do coronavírus trouxeram crise, também evidenciaram um nicho no qual os latino-americanos podem se dar bem. Entre os grandes sucessos de 2020, estão "Animal Crossing: New Horizons", "Fall Guys" e "Among Us". Todos os três com um visual nada realista e milhões de usuários.
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