Silvero Pereira (37) é um camaleão. Seja como Lunga, o matador raivoso e ensanguentado de "Bacurau", ou mesmo como a transformista Gisele Almodóvar, que conquistou o Festival de Cannes deste ano ao desfilar com um elogiado vestido multicolorido, é impossível ficar indiferente a esse ator cearense de personalidade forte, convicções políticas e inegável talento.
Revelado no teatro de vanguarda, especialmente após o sucesso da peça "BR-Trans" (que mostrava a dura realidade das travestis e transexuais no Brasil), o artista ficou conhecido do grande público com a transformista Elis Miranda, na novela "A Força do Querer" (2017). Oportunidade essa que ainda agradece à autora da trama, Glória Perez.
"Foi uma das primeiras chances de falar abertamente sobre transfobia, homossexualidade e identidade de gênero no horário nobre da TV aberta de forma séria, sem esbarrar na caricatura. O respeito que a sociedade brasileira precisa aprender versa sobre esse tipo de ação", opina o ator, em entrevista ao Gazeta Online. Silvero, inclusive, é um os convidados do 26º Festival de Cinema de Vitória, que acontece de terça (24) a domingo (29) com exibições de filmes, cursos, palestras, shows musicais e lançamentos de livros.
A ator será apresentador de uma das noites da mostra competitiva de longas e curtas-metragens, além de ministrar uma oficina de atuação.
Sempre bem humorado, com afiado senso crítico e conhecido defensor das causas LGBTQ+, Silvero Pereira confessa que a aceitação de sua sexualidade se deu por conta de injustiças que aconteceram durante sua infância.
"Sou de Mombaça, uma cidadezinha do sertão cearense marcada pelo coronelismo e machismo. Quando criança, tinha receio de chegar perto de uma travesti famosa do lugar, a Barbosinha. Sempre me falaram que 'isso' era uma doença e eu não poderia contraí-la. Hoje me arrependo dessa atitude. Muito do que sou e do que defendo se deve à coragem que ela teve de expor a sua sexualidade", desabafa, destacando seu amadurecimento pessoal após decidir morar em Fortaleza e dedicar-se ao teatro, há cerca de 24 anos.
"Tive contato com pessoas que me ajudaram a formar a minha personalidade, seja como artista e cidadão politizado. Sempre digo que a arte é um instrumento que usamos para combater uma sociedade doente, marcada pelo preconceito e por ideias retrógradas, dispara, complementando que a arte é "uma das poucas instituições que a política não conseguiu corromper".
VIOLÊNCIA
É impossível conversar com Silvero sem sentir sua paixão ao falar de Lunga, o justiceiro que ajuda os moradores de uma cidadezinha do interior de Pernambuco a vencer a violência e o abandono social em "Bacurau", filme de Kléber Mendonça e Juliano Dornelles que venceu o Prêmio do Júri no Festival de Cannes deste ano e vem fazendo sucesso de bilheteria nos cinemas do Brasil.
"É um personagem fascinante, que propõe uma ruptura com o estereótipo machista do homem do cangaço. Ele é híbrido, de atitudes másculas, decidido, mas que usa brincos e colares, com uma alma feminina", explica, complementando que a sexualidade do personagem importa bem menos do que o seu sentimento de justiça.
"É um filme que versa sobre o Brasil atual. Vejo o Lunga como um herói, um Robin Hood do Nordeste. Ele é vilão apenas para um sistema que tenta corromper e explorar o povo. E, no filme, a população responde a esse ataque com violência. Não à toa, que uma sequência de tiroteio começa na escola, com a educação, área muito afetada pelos desmandos do governo federal", critica, falando que a repercussão nacional e internacional do filme não seria tão grande se o Brasil vivesse uma situação política menos opressora.
EXPRESSÃO
Nem só de violência vive o imaginário de Silvero Pereira. Também sobra espaço para a ternura, especialmente na hora de falar do sucesso que a transformista Gisele Almodóvar fez no tapete vermelho de Cannes, durante o lançamento de "Bacurau". Acima, veja o trailer de "Bacurau".
"Ela é meu alterego, a chance que tenho de expressar a minha sexualidade sem amarras. Depois que decidi participar de Cannes travestido, muitas pessoas se interessaram pela minha carreira e pelo meu trabalho de mobilização em favor da comunidade LGBTQ+".
O ator, aliás, vê com preocupação a onda de conservadorismo que assola uma parte da sociedade atual. "Vivemos um momento de censura, seja nas artes, na educação e em relação à sexualidade. É preocupante a iniciativa do governo em impor restrições a produções que discutem a sexualidade e a identidade de gênero. Além de nos calar, isso traz desinformação, intolerância e mais violência", complementa.
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