Toda transformação gera insegurança e, às vezes, incapacidade de aceitar mudanças de situações pré-estabelecidas. Na nossa língua, isso não é diferente. Um exemplo é uso da linguagem não-binária, que vem dando o que falar nos últimos dias.
Como exemplo recente, tivemos o caso da vereadora de Vitória Camila Valadão (PSOL) que, durante sessão especial na câmara em alusão ao Dia Internacional da Mulher, na última terça-feira (08), dirigiu-se à casa com um "Bom dia a todos, todas e 'todes'", sendo questionada por parlamentares conservadores sob a justificativa de que o gênero neutro não consta na gramática normativa. Valadão, por sua vez, afirmou estar apenas "sendo inclusiva", alegando censura a sua linguagem.
Outro caso de grande repercussão foi o da professora de uma escola de ensino fundamental de Vitória, reprimida por usar um inclusivo “todes bem-vindes” para se comunicar com os alunos em uma plataforma interna de ensino. O caso chamou a atenção dos pais, que levaram a reclamação até a Câmara de Vitória. O presidente da casa, Davi Esmael (PSD), pediu esclarecimentos à Prefeitura de Vitória, alegando que assuntos relacionados à ideologia de gênero foram retirados do Plano Municipal de Educação.
Movimentos sociais apoiam uma mudança linguística, buscando caminhos para tornar a língua portuguesa mais humana. Uma das maneiras mais utilizadas é a substituição de pronomes por termos neutros, ou gênero neutro, ou até mesmo substituir artigos nas contrações de preposições, como o da/do, por de.
O uso de "todes", "todxs" ou "tod@as" vem se tornando cada vez mais comum nas redes sociais e começa a permear o cotidiano do brasileiro, chamando a atenção para a pergunta: Isso seria uma afronta à nossa língua e gramática de cada dia?
Em suas "andanças" pelas redes sociais, ou mesmo em uma roda de amigos, se ouvir um "todes" e um "bem-vindes", e demais conteúdos usados pela linguagem não-binária (ou linguagem neutra), saiba que seu uso não está incorreto, mesmo os termos não estando presentes na gramática normativa (a que você usa em sala de aula).
De acordo com a professora da Universidade Federal da Bahia, linguista especialista em História das Ideias Linguísticas e Análise de Discurso, Isadora Machado, a língua está em processo de mudança 24h por dia, por isso, transformações sempre são bem-vindas.
"Dizemos em Linguística que a língua é variação contínua, porque ela nunca para de se modificar. Só que não percebemos essas micro-mudanças, assim como não percebemos que a Terra está girando e mudando de lugar. Nós percebemos que algo está mudando quando, por exemplo, uma professora escreve 'todes' e na semana seguinte uma vereadora diz 'todes'", defende.
"Então começamos a especular porque essa mudança aconteceu: todo mundo vai ser obrigado a dizer 'todes'? As gramáticas devem mudar e acrescentar o 'todes'? Essa discussão é saudável e faz parte da sociedade. Por isso digo para as pessoas ficarem calmas: a língua nunca muda por decreto. Acredito que, de um modo geral, as gramáticas normativas usadas nas escolas de educação básica ganhariam muito se trouxessem mais elementos de nossas vidas cotidianas", argumenta.
O mais importante é saber que gramática difere de língua em uso, aquela que é falada pelas pessoas em vários lugares e situações do cotidiano. "Temos a gramática normativa, que é essa que aprendemos na escola e que está preocupada em dizer o que é certo e errado, mas temos outras, que estão mais preocupadas em como as coisas são do que como deveriam ser. Temos as gramáticas gerativa, descritiva, histórica, de usos e de valências, dentre outras", cita, afirmando que, no Brasil e na América Latina, temos uma forte tradição de ensinar apenas a gramática normativa nas escolas.
"Isso faz com que a sociedade tenha a sensação de que a língua não muda. Fundamentalmente, nossa tradição escolar-normativa faz com que acreditemos que mudanças 'ameaçam' a língua e a sociedade. Pelo contrário, mudança é a matéria-prima de qualquer língua".
A língua existe, está sendo usada e tem suas regras que são como a lei da gravidade, ou seja, ninguém precisa conhecê-las para segui-las. A diferença é que as leis da língua sofrem a ação de acontecimentos sociais.
"Quando pensamos na gramática apenas como manual de uso da língua, não estamos olhando para a língua em seu funcionamento real, mas sim para uma regra social. E essa regra social é sempre definida por um grupo que está no poder, alguém com classe, raça, gênero e sexualidade bem definidos", afirma Luiz Felipe Andrade Silva, Mestre e Doutor em Linguística pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
"A gente não deve jogar essa regra social fora, mas ela pode atender melhor à sociedade. A gramática tem que se adequar à língua de uso, à língua viva, em movimento. Temos uma língua que guarda o sexismo histórico de anos de uso. A linguagem não-binária visa transformar isso. É o movimento da língua mesmo, não há nada de errado nisso. Porque é a gramática que tem que refletir a língua de uso, não o contrário".
O avanço dos movimentos LGBTQIA+, e sua busca pela inclusão social, deu poder de voz a pessoas que se identificam como não-binárias, ou seja, sua identidade de gênero (e expressão de gênero) não são limitadas a masculino e feminino. Quem se considera não-binário pode não se reconhecer com a identidade de gênero de homem ou mulher, ou pode se caracterizar como uma mistura entre os dois. Afinal, não há limites para a realização pessoal e afetiva, que sempre passa pela autoaceitação.
Para "desencucar" e tirar todas as possíveis dúvidas sobre o tema, o portal Canal das Bee, no YouTube, preparou um vídeo elucidativo explicando o que é gênero não-binário. Dê uma conferida, que depois voltamos para a história que queremos contar.
É interessante pensar que linguagem não-binária é uma proposta de intervenção na língua portuguesa, ou em qualquer outra língua. A ação visa contemplar grupos que não se sentem representados pelo uso normativo, obrigatório do gênero masculino ou feminino para designá-los. A proposta não-binária, portanto, acaba por deixar exposto o machismo inerente da língua.
"E, aí, vêm algumas pessoas e dizem: 'Não pode, a língua é essa', mas ela não foi sempre essa. A impressão que me dá, às vezes, é a de que quem nega tão veementemente uma proposta como essa é uma pessoa que vê uma foto antiga de um jogador de futebol correndo, com as pernas no ar, e diz: 'O ser humano flutua parado no ar, não pode se movimentar com os pés no chão'. Os estudos da linguagem, a sociolinguística, a linguística histórica e a análise de discurso estão aí para dizer que a língua sempre se movimenta com os pés no chão, e esse chão é a nossa vida social", aponta Luiz Felipe.
No caso da linguagem não-binária, a tentativa de compreendê-las pode se confundir com situações arraigadas a nossa formação social. Tais "pré-conceitos" podem levar a perdas irreparáveis para pessoas em busca de representatividade.
Estudante do curso de Bacharelado Interdisciplinar em Humanidades, da Universidade Federal da Bahia, Beni Lopes, de 23 anos, se afirma do gênero não-binário. Beni acredita que o uso da linguagem neutra é fundamental para se sentir "incluide" no contexto social em que vive.
"O conhecimento dessa linguagem foi importante para meu processo de autoaceitação. Esse tipo de comunicação, na verdade, é essencial para o contato com o outro, pois não conhecemos sua vivência ou com quem estamos falando. Como forma de respeito e inclusão, acho necessário usar o pronome 'todes', por exemplo", define, dizendo ser uma tendência da língua portuguesa usar o masculino como padrão.
"Em uma sala de aula, pode haver várias mulheres e apenas um homem, mas, normalmente, um professor se refere a um pronome masculino, como todos, para dirigir-se à turma. Neste caso, o masculino é usado como uma forma neutra de comunicação, mas nunca vai deixar de ser masculino, o que pode levar algumas mulheres a não se sentirem incluídas", defende, afirmando que aplicações gramaticais como essa são instrumentos para muitos debates políticos e sociais, questionando o porquê do gênero masculino estar sempre à frente na construção da palavra.
"A linguagem neutra é uma forma suprema de inclusão. E para todas as pessoas, seja cisgênero ou transgênero", explicita.
Chegamos a um questionamento: as mudanças propostas pela linguagem não-binaria podem (ou devem?) ser inseridas na gramática normativa, aquela que estudamos nas escolas diariamente? Na Suécia, por exemplo, tivemos o surgimento do pronome pessoal neutro "hen", como alternativa aos específicos de gênero hon ("ela") e han ("ele").
Luiz Felipe acredita que mudanças na gramática escolar seriam positivas, especialmente para "alunes" que não se sentem "contemplades".
"Antes disso, acho que não custa incorporarmos ao nosso uso. A gente fala tão diferente do que a gramática normativa prega, mas selecionamos um elemento ou outro para funcionar como 'cavalo de batalha'. Esses senhores que reclamam tanto que a linguagem não-binária não está na gramática usam corretamente as regências verbais, as concordâncias, as regras de colocação pronominal? Tenho certeza de que não", provoca.
Não é preciso ser especialista em Psicologia para saber que a polêmica acaba recaindo sobre o (velho) tabu ideologia de gênero/linguagem não-binária e sexualidade. Mas será que usar esse vocabulário pode afetar questões relacionadas à formação sexual da criança, por exemplo?
"O uso de regras de gramática e o vocabulário não-binário podem atender aos anseios de uma parcela da população que não se vê contemplada pelo sexismo, pela cis-heteronormatividade machista do português, tal como o herdamos. Jamais pode influenciar as pessoas na constituição de sua sexualidade, de sua identidade de gênero", afirmou Luiz Felipe Andrade Silva, que também é coordenador da GrupA (UFBa/CNPq).
"Somos criados em um mundo onde a mídia, as regras e a violência reforçam exemplos de cis-heteronormatividade machista 24 horas por dia. E resiste-se a isso. Gays, lésbicas, transexuais existem: eles não foram influenciados a nada, não aprenderam isso com ninguém. Por que haveria ser diferente agora?", afirma.
Isadora Machado tem a mesma vertente de pensamento. "Incluir pessoas não-binárias em nossas falas pode trazer mudanças positivas. A pedagogia sabe há muito tempo que quanto mais uma criança convive com pessoas e culturas diferentes das dela, mais chances ela tem de crescer e se tornar um adulto saudável. Isso porque conviver com quem é diferente de mim, faz com que eu crie ferramentas para lidar com situações desafiadoras. A linguagem não-binária, ao contrário do que muita gente pensa, permite que cada um de nós possa se autoafirmar, sem necessidade de anular outras existências".
Por que defender a gramática normativa para umas colocações e não defender para outras? O linguista também tem uma posição bem definida. "Porque o problema não é a língua, é outro. Estão usando a língua para tentar validar sua LGBTI+fobia e seu machismo".
Beni Lopes, que também participa de um núcleo de pesquisa que estuda a diversidade da morfossintaxe de gênero do português brasileiro contemporâneo, afirma que, ao contrário do que muitos conservadores afirmam, o estudo da linguagem neutra não é de difícil aprendizado. "Acabo sempre comparando ao uso de gírias. No início, é complexo de aprender, mas, na prática, vai se anexando ao contexto social".
Segundo Beni, é errado misturar sexualidade com linguagem de gênero. "Eles estão em polos diferentes. Sexualidade é com quem você se relaciona. Já a linguagem de gênero é a forma de se comunicar com o outro. Muitos usam 'a', para se referir às mulheres, e 'o', para se referir aos homens. O 'e', por exemplo, pode ser usado para a inclusão de todos os gêneros", exemplifica.
Perguntamos à Isadora se, como "todes" e "bem-vindes", é corriqueiro palavras se transformarem com a linguagem do cotidiano, algo típico do contexto narrativo ou mesmo da estratégia comunicativa de alguns nichos.
"Podemos citar bullying, pois, apesar de ser uma palavra da língua inglesa, passamos a usá-la em função da importância do tema. Outro exemplo é 'boa noite a todos' e 'boa noite a todas e todos'. Há pouco mais de vinte anos, quase todos os protocolos de cerimônia pública passaram a incluir a forma masculina e feminina em função de reivindicações das mulheres. Não podemos esquecer a sigla GLS, que passou a se chamar LGBTQIA+. Se antes era comum no Brasil usarmos GLS para falar de todas as expressões de sexualidade dissidente da heterossexual, diversos congressos do movimento LGBT foram pautando a modificação, de modo a tornar a sigla mais inclusiva", complementa.
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