"O rap é compromisso. Não é binárie". Essa é a descrição que você vai ler ao visitar o perfil da artista capixaba Afronta MC no Instagram. Em referência a um dos maiores nomes do rap brasileiro, o Sabotage, ela convida o público a refletir sobre o machismo e a homofobia dentro do movimento Hip Hop e também na sociedade. O tom de protesto aparece no trabalho da jovem de 20 anos que viu a música como instrumento de denúncia e de conscientização.
Nascida e criada no Morro do Jaburuna, em Vila Velha, Afronta conta que sua vivência e trajetória refletem nas composições e performances artísticas. Estou dentro do guarda-chuva das pessoas trans, mas como uma pessoa não-binária: que é alguém que não se reconhece dentro da binaridade dos gêneros, homem ou mulher. Sou bicha, sou preta e pobre, se descreve com orgulho.
A MC tem uma caminhada recente na música, mas sempre acompanhou de perto o movimento Hip Hop capixaba. Além de cantora, Afronta também é atriz e possui formação técnica em teatro.
Sua inserção na cena rap foi frequentando as batalhas de rima: encontros para competição de versos improvisados entre os aspirantes do gênero. Assistindo aos "confrontos", nasceu dentro da artista a vontade de também cantar. Porém, como ela mesma relata, o espaço ainda era hostil. Sempre gostei do estilo e de ir aos eventos, mas nunca me vi como parte do movimento por ser um lugar machista, transfóbico e homofóbico. Eu não me via representada ali, conta.
A vida da artista mudou completamente a partir de 2019 quando assistiu a um vídeo da rapper paulista Monna Brutal competindo em uma batalha de rimas. Inspirada na artista trans, Afronta criou coragem para também entrar para as disputas líricas. E foi aí que a jovem começou a ganhar espaço e se tornou, como ela mesma diz: a primeira bicha a batalhar nas competições de rap capixaba.
Durante todo aquele ano, Afronta conciliava os estudos em Serviço Social, na Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), e os rolês das batalhas que estouravam por vários cantos da cidade. As batalhas da Escadaria do Rosário, Batalha do Atlântica e do Projeto Boca a Boca foram as que a artista mais frequentou e onde aprimorou a técnica da rima improvisada, seja batalhando ou observando outros rappers duelando.
Em pouco tempo, ela ganhou visibilidade e conseguiu, alguns meses depois, lançar sua primeira produção no YouTube. O trabalho teve uma boa repercussão nas redes sociais e jogou luz sobre a artista. Visualizando um espaço para mostrar seu trabalho na arte, ela seguiu compondo mais e mais.
Sua escrita ganhou peso com as denúncias contra o racismo, o machismo e a homofobia. E essa é a base do trabalho da artista que como o próprio nome já diz, veio para afrontar. Temos muitos desafios pela frente, mas vamos driblando tudo com a força da beleza do sol, como diria Emicida, cita.
Há um mês, Afronta MC lançou o clipe de "Se Morde de Raiva" pelo selo independente da PERC Produções. Apesar de ter poucos recursos e a realização ser praticamente coletiva, o clipe é uma excelente obra audiovisual que mistura referências do vogue, estilo de dança popularizado entre pessoas LGBT e negras nos Estados Unidos na década de 1980, e o Hip Hop.
A mensagem da canção é toda trabalhada em metáforas e ironias com pitadas de críticas sociais. Afronta MC é um dos mais novos nomes do rap capixaba e se mostra como uma potência em ascensão no mercado musical do estado.
As batalhas de rimas tem sido incubadoras para os artistas que desejam crescer com a música e serem representantes do gênero rap no Estado. Diversos rappers capixabas que já ganham espaço nacionalmente como César MC, Afari MC, Noventa e Dudu têm as batalhas como início de suas trajetórias. É na rua e travando uma disputa de versos improvisados que surgem os novos nomes.
Sayra, de 21 anos, também tomou gosto pela rima neste espaço. Mas o apreço pela música vem de dentro de casa, isso porque a mãe da artista, que mora em Laranjeiras, na Serra, sempre colocava alguma canção para a filha escutar antes de dormir. O hábito inocente fez crescer nela o desejo em se desenvolver artisticamente. Com 12 anos, a artista aprendeu a tocar violão e foi nessa mesma idade que passou também a compor e a cantar.
O contato com o rap aconteceu quando ela estava no ensino médio. Durante as aulas de geografia, ministradas pelo professor André Luiz Angelo Martins, conhecido no universo Hip Hop capixaba como Adikto, a jovem se interessou pelo gênero. Encantada pelo movimento, Sayra passou a frequentar, assim como Afronta MC, as batalhas de rimas que aconteciam na cidade.
A primeira vez que assistiu uma foi na Escadaria do Rosário, santuário do movimento Hip Hop na Capital, e sua primeira participação encarando uma batalha de rima aconteceu no centro cultural Casa da Barão. Ela conta que a experiência não lhe garantiu uma vitória de primeira, mas isso não a impediu de continuar, pelo contrário, fez a jovem querer aprimorar e voltar para outra batalha. Eu perdi, mas faz parte. E por um ano eu segui batalhando, diz.
Como Afronta MC, a rapper Sayra também faz parte do selo independente PERC Produções que vem investindo nos novos artistas de rap e R&B do Espírito Santo. Em 2019, ela lançou o primeiro single intitulado Mente Avante com a produtora.
Adikto, um dos precursores dos projetos de batalhas de rima no ES, vê a nova safra com bons olhos, orgulhoso do que plantou em 2006. Em 2006 eu batalhei com o Emicida, fui para a final com ele. Quando voltei, iniciei o projeto Escola de Rima, precursora para várias outras rodas de rimas que foram surgindo como o Projeto Boca a Boca. Eu continuo de fora observando todos os novos nomes e a maioria é formada por meus alunos. É muito bom saber que o trabalho feito lá atrás não foi em vão. Fico feliz em ver esse crescimento e por fazer parte de tudo, conta Adikto.
Mas nem só de batalhas surgem os novos nomes. A internet possibilitou aos artistas independentes mostrarem seus trabalhos para um número maior de pessoas e com um custo menor.
É o caso do capixaba Matheus Nascimento que, desde 2018, vem mostrando ao mundo sua voz carregada no Rhythm and Blues. Naquele ano, o rapaz de 22 anos publicou em seu canal do YouTube o primeiro EP de quatro faixas autorais: Quando cê vem me ver, Comigo não, No peito e Dose over.
Toda a produção da obra foi feita pelo artista que apenas com um violão e um celular registrou em áudios suas composições. Com as canções gravadas de forma caseira, Matheus preparou um material visual de divulgação e publicou o trabalho na Internet. Ele conta que ficou surpreso com a repercussão positiva que teve, especialmente em suas redes sociais, e que recebeu incentivos de amigos e familiares para continuar com a música.
A trajetória do músico tem início dentro de uma igreja. Ainda criança, ele integrou o coral religioso e foi durante um culto evangélico que ele cantou pela primeira vez para um público. Desde os 13 anos, quando começou a tocar violão, Matheus escreve suas canções. As inspirações vêm de dentro, dos próprios sentimentos que perpassam o jovem. E por já ter algumas letras escritas é que ele decidiu em 2018 compilar e gravar dentro de casa seu primeiro trabalho.
Matheus Nascimento tem uma voz rouca e a língua presa, o que não prejudica sua musicalidade, ao contrário, agrega como características exclusivas do artista. Ele conta que bebe da fonte do R&B e da black music brasileira, tendo como primeiras referências musicais o grupo Fat Family. Pela infância no meio religioso, ele também carrega consigo inspiração em cantores da música gospel, como Cassiane e Aline Barros.
Morador de Cobilândia, em Vila Velha, o cantor diz que sendo um artista independente e novo no cenário musical, enfrenta algumas dificuldades, mas, por conta da Internet, percebe uma colaboração e incentivo vindo do próprio público que o acompanha. Tenho minhas limitações financeiras. Mas ter pouco dinheiro não vai me parar. A arte não é feita sozinha. O apoio é muito necessário para os artistas iniciantes e eu vejo essa onda colaborativa na Internet. Eu sou a prova viva disso, meu microfone é de uma doação, revela.
O cantor diz perceber ainda um olhar mais atento do público capixaba que passa a perceber e a valorizar mais os talentos da casa. Para ele, isso é por conta da projeção nacional de alguns nomes, como SILVA, por exemplo. Há dez anos, era muito mais difícil de ter visibilidade, agora temos cantores mais famosos conquistando o seu espaço. Eles que já estão mais em evidência atraem o olhar para cá e isso já muda um pouco o cenário, avalia.
E é neste contexto de possibilidades com a internet e aproximação do público capixaba com os artistas da terra que o cantor Matheus Nascimento apostou em lançar sua primeira canção produzida em estúdio. Pirar chegou ao mundo e às plataformas digitais na última quarta-feira, 11.
De forma independente ou com uma produtora, essa turma promete movimentar a cena da black music no Espírito Santo. Vale muito ficar de olhos e ouvidos ligados, pois tem muita produção chegando por aí.
*Lorraine Paixão é aluna do 23° Curso de Residência em Jornalismo da Rede Gazeta, sob orientação do editor Erik Oakes.
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