Ainda pior que a convicção do não, e a incerteza do talvez, é a desilusão de um quase. Assim começa Quase, texto que há mais de uma década circula na internet como se fosse de Luis Fernando Verissimo. Um leitor mais íntimo da obra do escritor, no entanto, saberia que não estão ali as suas marcas de autoria.
O fenômeno não é novo. Desde que a literatura é literatura e até antes disso , o mundo sempre esteve repleto de textos falsamente atribuídos a um autor, geralmente famoso. Livros, campanhas publicitárias, discursos de políticos ajudaram a perpetuar alguns erros. Até as redações do Enem estão impregnadas de citações improcedentes.
A ironia é que a internet, em vez de servir como fonte de checagem, com suas bibliotecas abertas e sites sérios dedicados a escritores, acabou ajudando a piorar o cenário, com uma escalada monumental na propagação de obras apócrifas. O assunto é tão sério que é discutido na sala de aula, mesmo entre alunos mais jovens.
O professor de Língua Portuguesa Bruno Lima conta que aborda o problema ao falar sobre plágio. É muito comum, principalmente nas séries iniciais, quando solicitada alguma pesquisa aos alunos, que eles apresentem cópias de textos retirados de sites, afirma.
Quando se trata de apócrifos, a web brasileira tem seus queridinhos. Além de Luis Fernando Verissimo, a lista dos mais falsificados inclui Caio Fernando Abreu, Arnaldo Jabor, Mario Quintana, Manoel de Barros, Carlos Drummond de Andrade e Clarice Lispector. A ucraniana naturalizada brasileira virou brincadeira nas redes sociais, ao ser associada a qualquer frase que os usuários julguem inteligente ou reflexiva.
Mas por que, apesar da facilidade de verificar a autoria, esses erros são tão frequentes? Tenho a impressão que o fenômeno é um sintoma muito mais complexo do que parece. É um paradoxo: estamos falando de compartilhamento de textos literários o que pressupões leitores -, ao mesmo tempo, estamos falando de uma completa ausência de familiaridade com os textos e autores consagrados, comenta Marcos Ramos, escritor e professor de Literatura.
Alguns dos motivos são o baixo índice de leitura dos brasileiros e as falhas do sistema educacional. Sete de cada dez alunos do 3º ano do ensino médio têm nível insuficiente em português, segundo o Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb). Isso significa que não conseguem localizar informações explícitas em um resumo, por exemplo. O número médio de livros lidos na íntegra por ano pelos brasileiros é de apenas 2,43 exemplares. Isolando as obras de literatura, a média despenca para 1,26, aqui incluindo os lidos em partes.
Se três em cada 10 brasileiros são analfabetos funcionais, se 42% dos brasileiros com mais de cinco anos alegam ter dificuldades de compreensão e por isso não leem, só podemos concluir que não houve ainda no Brasil uma aposta radical na democratização da leitura, avalia Ramos. O tema, aliás, será debatido em palestra na Ufes nesta segunda-feira, dia 2.
Não se pode delimitar ao certo os motivos de Verissimo, Lispector e Drummond constarem entre os campeões da fraude. Arrisca-se apenas a hipótese de que os autores sejam donos de uma aparente simplicidade de estilo. E têm peso suficiente no cânone para que seus nomes funcionem como selo de qualidade a textos de anônimos. Já fui muito elogiado pelo que nunca escrevi, disse Verissmo, em ceta medida resignado.
Melhor remédio para separar joio do trigo, a leitura ainda é para poucos no Brasil, reforça Ramos. Compartilhar esses textos na internet, entre outras coisas, é uma maneira de se sentir (e sobretudo se exibir) incluído nessa parcela privilegiada.
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