Desde 2013, o quintal de Suzana Sapucaia Dias, a dona Suzana, recebe visitantes de todo o mundo. As tradicionais moquecas servidas em travessas de barro no restaurante ali, combinadas à vista privilegiada da baía de Todos-os-Santos, ajudaram a alimentar a fama da comunidade do Solar do Unhão, em Salvador -e a levar dona Suzana para as telas de uma série da Netflix.
Foi em outubro do ano passado que o lugar, cercado por vielas e casas empilhadas no entorno do Museu de Arte Moderna da Bahia, foi procurado para ter sua história contada na Netflix. O Ré-Restaurante, que recebeu esse nome por causa da leve gagueira de dona Suzana, seria tema de um episódio da série documental "Street Food América Latina", que apresenta comidas de rua em seis países.
Foram nove meses desde o primeiro contato até a estreia da produção, em julho -período suficiente para que tudo tenha mudado no local. Por causa da pandemia do novo coronavírus, dona Suzana teve de fechar o estabelecimento e está há mais de três meses com dificuldades financeiras. "Estou parada, devendo para Deus e o mundo", diz, enquanto enumera despesas com alimentação, telefone, internet e uma dívida com uma empresa revendedora de cosméticos.
Além do restaurante, a casa abriga a cozinheira baiana há 40 anos e outras nove pessoas -o marido, dois filhos, cinco netos e um bisneto. O filho mais novo e o marido, Antônio Carlos Dias, costumavam vender pescados para o restaurante e para a região. O outro filho trabalhava como garçom. Com a quarentena, agora estão sem emprego.
Para contornar a situação, dona Suzana diz que pensou em voltar a ser lavadeira, ofício que desempenhava antes de assumir a cozinha, mas "nem uma roupa para lavar e ganhar R$ 50 por dia eu estou achando", conta.
Desde março, a família tem recebido apoio de vaquinhas organizadas por amigos e doações de cestas básicas. Por ter perdido sua única fonte de renda, ela se inscreveu no auxílio emergencial do governo federal, mas o pedido ainda está em análise. Seus irmãos e um dos netos, porém, conseguiram o benefício e têm partilhado parte dos recursos recebidos.
"O bolso está vazio, mas tenho uma fama maravilhosa. Muita gente já me procurou e ligou dizendo 'deixe passar a pandemia que eu vou aí comer sua moqueca, vou lhe dar um abraço, um beijo'", diz.
Depois do lançamento da série e com a divulgação do restaurante nas redes sociais na última semana, ela conta que voltou a vender alguns pratos por encomenda. Enquanto não encontra um motoboy para realizar entregas, os clientes telefonam, escolhem as refeições e vão ao local para buscar os pratos --sempre vestindo máscara.
O cardápio tem pratos como moqueca de camarão -R$ 30-, feijoada -R$ 25- e peixe frito -R$ 20. Ela diz que faz questão de comprar os ingredientes pessoalmente em feiras locais, mas conta ter medo de se contaminar com o coronavírus. "Já estou coroa. Se cair doente, já era."
Na última semana, foram só cinco clientes, número ainda tímido se comparado à média de 20 fregueses semanais e do faturamento de R$ 2.000 mensais que tinha antes da pandemia.
Por ter assinado um contrato com a Netflix, ela diz não poder revelar se foi remunerada durante as gravações ou após o lançamento do programa. A assessoria da plataforma também não comenta sobre valores relacionados a produções.
Além de Salvador, "Street Food América Latina" apresenta a culinária popular em cidades da Argentina, da Bolívia, do Peru, da Colômbia e do México. Sobre o cenário de crise que se abate sobre os comerciantes retratados, o produtor executivo Brian McGinn afirma que "a perseverança está no sangue deles, e estamos confiantes de que eles enfrentarão os obstáculos de hoje".
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