Ex-chefe do núcleo de humor da Globo, Marcius Melhem não viu graça quando três comediantes e um youtuber usaram as redes sociais para tascar nele o rótulo de assediador. Processou todos.
As ações que move contra o quarteto "Danilo Gentili, Felipe Castanhari, Marcos Veras e Rafinha Bastos" são apontadas por advogados como um cerco que beira o assédio judicial, já que os quatro alvos são amigos da mulher que o acusa de assédio moral e sexual, a também humorista Dani Calabresa.
A pessoas próximas Melhem se diz indignado com o que vê como um cancelamento sumário antes mesmo de ser julgado num tribunal tradicional, que não seja o da internet. Ele nega as acusações.
As primeiras sentenças chegaram, com cada uma apontando para uma direção. Enquanto a juíza Carolina de Figueiredo Dorlhiac Nogueira negou a indenização por danos morais que Melhem cobrava de Danilo Gentili, seu colega Valentino Aparecido de Andrade entendeu que Felipe Castanhari devia pagar R$ 100 mil, o dobro do que a ação pedia. Nos dois casos, cabe recurso.
Segundo a magistrada do processo contra Gentili, "configura verdadeira censura prévia, vedada pela Constituição", pedir que o réu não poste "mensagens e vídeos depreciativos e ofensivos ao nome, imagem e honra do autor". Quando as acusações de assédio emergiram, o apresentador do The Noite, do SBT, ironizou o colega em postagens como "uma coisa não podemos negar, o Marcius Melhem foi um grande líder na Globo, daqueles que não têm medo de botar o pau na mesa".
Nogueira diz, em sua decisão, que, ao ingressar na vida pública, a pessoa "deve ser mais resistente a críticas e comentários emitidos por terceiros".
Andrade pegou outra via ao condenar Castanhari. O youtuber havia dito sobre o ex-global "não caiam nesse discursinho de merda do Marcius Melhem". "Esse cara é um criminoso, um escroto, um assediador que merece cadeia por todo o sofrimento que causou."
Segundo o juiz de direito, a "clara e óbvia intenção de não se limitar a expender uma opinião, mas sim a fazer um juízo altamente negativo" sobre Melhem ultrapassa o direito à liberdade de expressão.
Aos fatos. Com 17 anos de Globo, Melhem foi demitido em agosto de 2020. Na época, a emissora divulgou um comunicado dizendo que a decisão foi de "comum acordo" e que o artista "estava de licença desde março para acompanhar o tratamento de saúde de sua filha no exterior".
Na época, já circulavam rumores de que o coordenador do departamento de humor do canal, responsável por programas como "Tá no Ar", "Zorra" e "Isso a Globo Não Mostra", tinha assediado moralmente sua funcionária e amiga Dani Calabresa.
Em outubro, o jornal Folha de S.Paulo publicou que, além de Dani, outras mulheres procuraram o compliance da Globo acusando Melhem de praticar um tipo assédio ainda mais grave, o sexual. Dois meses depois, a revista Piauí trouxe extensa reportagem detalhando como o ator e diretor supostamente assediava suas subordinadas.
Ele contestou 43 pontos do texto, como uma passagem que descreve como Melhem foi dar uma "conferida" no figurino de Dani, que estaria de maiô num camarim nos Estúdios Globo. Segundo o acusado, a cena em questão foi gravada numa praia carioca, e ele "nunca foi a uma externa do "Zorra" fora dos estúdios".
O humorista virou vidraça sobretudo após a reportagem da Piauí. Escolheu entrar na Justiça só contra os quatro homens, fora Dani Calabresa e a revista. A sentença dura contra Castanhari assustou o grupo.
A defesa do influenciador levantou casos em que, mesmo quando personalidades eram consideradas culpadas pelo que disseram sobre terceiros, as reparações financeiras eram bem mais modestas. Quando a pessoa criticada não é famosa, elas ficam em torno de R$ 5.000 e R$ 10 mil.
O valor aumenta um pouco em imbróglios judiciais envolvendo pessoas conhecidas. Um exemplo é Jair Bolsonaro, condenado a pagar R$ 20 mil à repórter do jornal Folha de S.Paulo Patrícia Campos Mello, atacada pelo presidente com falas sexistas.
A Justiça também entendeu que o youtuber Felipe Neto deveria repassar R$ 8.000 ao presidente da Funai, Marcelo Augusto Xavier. O sujeito já ajudou invasores de terras indígenas, foi reprovado em prova da PF por problemas psicológicos e agrediu o pai idoso com um murro na cara, postou o youtuber em 2019 sobre o indicado de Bolsonaro ao cargo.
"Não encontramos um outro caso, até o momento, em que uma pessoa foi condenada a R$ 100 mil por um único post em que critica uma celebridade", diz Rafael Neumayr, advogado de Castanhari. "Ele entrou naquela toada de manifestações públicas contra a figura do Marcius, quando absolutamente todo mundo estava fazendo comentários [sobre ele]. Pegou carona nesse movimento, mas com interesse pessoal por ser amigo próximo da Dani e estar muito chateado com tudo o que aconteceu."
Marcos Veras, Danilo Gentili e Felipe Castanhari são amigos de Dani Calabresa, e Rafinha Bastos, um colega de stand-up. Para seus advogados, os réus foram escolhidos a dedo, uma abordagem judicial para constranger a comediante que denunciou Melhem.
Os defensores encaram como estratégico só haver processos contra homens, quando muitas mulheres com igual projeção midiática também atacaram o comediante, de Xuxa a Tatá Werneck. Um homem denunciado por assédio alvejar mulheres solidárias a outra poderia ser contraproducente, afinal.
Por meio de sua assessoria de imprensa, Marcius Melhem diz que "apenas processou aqueles que, de modo injusto e irresponsável, por meio de suas redes sociais, com ampla abrangência, ou por meio da imprensa, passaram a ofendê-lo e a acusá-lo de um crime que não foi provado, e só pode ser dito que houve assédio se assim for provado e declarado em processo judicial por sentença da qual não caiba mais recurso".
Veras, que trabalhou na gestão Melhem em programas como "Escolinha do Professor Raimundo", nem sequer pode citar o nome dele em redes sociais. Liminar de maio, concedida pelo juiz Luiz Felipe Negrão, o proíbe de escrever qualquer alusão ao ex-coordenador até o desfecho da ação.
O que Veras publicou para virar alvo foi "estou com você! Que esse criminoso pague pelo que fez. Te amo". "Meu carinho, admiração e solidariedade a todas as mulheres que sofrem esse tipo de crime diariamente. E que Marcius, ou qualquer outro ou outra que tenha compactuado com isso, respondam pelos atos."
Melhem "usa uma linha de defesa atacando quem comenta o caso, ajuizando diversas ações, contra a denunciante [Dani Calabresa], contra humoristas, inclusive contra a revista que publicou as denúncias", diz o advogado Gustavo Arroyo, contratado por Rafinha Bastos. "Mas acreditamos que ao final prevalecerá o direito constitucional de liberdade de expressão."
Segundo Taís Gasparian, que advoga pela Piauí, por ora o que a equipe jurídica de Melhem faz não pode ser chamado de assédio judicial tal como vimos contra a jornalista Elvira Lobato e o escritor João Paulo Cuenca, ambos alvos da Igreja Universal, ou Rita Lee, processada por cerca de 50 policiais de Sergipe após criticar a agressividade de PMs com o público de um show seu ela os chamou de "cachorros" e "filhos da puta".
Segundo Gasparian, que também é advogada deste jornal, o que Melhem cria é, "no mínimo, um constrangimento ou ameaça a todos aqueles que tiverem a intenção de se manifestar sobre o assunto, e com isso tolhe a liberdade de expressão."
A condenação de Felipe Castanhari pareceu injusta na opinião dela, "porque o linguajar que ele utilizou é o mesmo adotado por muitos comunicadores atualmente", afirma. "Pode ser agressivo, mas a liberdade de manifestação não se restringe a mensagens educadas ou ponderadas. Muito ao contrário, serve para proteger justamente a expressão que não agrada."
Segundo Marcius Melhem, a cultura do cancelamento destrói reputações sem se importar com o direito de defesa, ainda mais o de "alguém que sofreu graves acusações pela indevida divulgação sobre um suposto assédio que sequer foi alvo de processo judicial", como diz a nota de sua assessoria.
"Não é trivial ser rotulado de assediador com tamanha repercussão. Marcius sofreu um verdadeiro linchamento público, sem provas e sem processo judicial. E os danos disso advindos, em razão do poder replicador das mídias sociais, podem nunca se remediar totalmente."
Em entrevista ao jornalista Mauricio Stycer, Melhem admitiu que foi "um homem tóxico, um marido péssimo, uma pessoa que cometeu excessos ao se relacionar com pessoas do seu próprio ambiente de trabalho". Mas isso não poderia ser confundido com crime sexual. "Embora confesse os meus excessos, jamais tive alguma relação que não fosse consensual e jamais pratiquei algum ato de violência com quem quer que seja na minha vida", disse Melhem.
Segundo a advogada Mayra Cotta, que representa 12 mulheres que já prestaram depoimentos sobre o caso no Ministério Público do Rio de Janeiro, "o grupo que hoje aguarda a conclusão das investigações retira boa parte de suas forças do apoio que recebe de amigos e conhecidos, e atacar esta rede de apoio é uma forma de atacá-las indiretamente".
"Parece que o recado que se tenta passar é de que qualquer um que apoie publicamente as mulheres que denunciam Melhem pode estar sujeito a alguma forma de vingança, que nesse caso vem por meio de uma estratégia judicial agressiva", diz.
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