Do garoto tímido, observador e questionador, que rondava os corredores de A Gazeta durante o curso de residência na década passada, sempre com algo a perguntar, sobrou muito pouco. Sendo (bem) generoso, talvez possa ter restado a humildade e o jeito simples e acolhedor, características de quem sabe levar a vida com leveza.
Aos 32 anos, o jornalista capixaba Raphael De Angeli anexou (há algum tempo) mais um adjetivo ao seu extenso currículo, apesar da pouca idade: inquestionável talento. Correspondente da Rede Globo em Paris desde 2018, De Angeli (como é chamado pelos amigos de redação de A Gazeta) apresenta segurança ao mostrar diariamente nos telejornais da emissora carioca notícias sobre a dura realidade da França, e da Europa, na batalha contra a pandemia da covid-19.
"A Europa sempre deixou claro que o isolamento social era a chave para vencer a batalha contra o novo coronavírus", afirmou o jornalista, em bate-papo com o "Divirta-se".
Durante a conversa, Angeli, que já passou por A Gazeta, TV Gazeta e SportTV, também falou do atual estágio da pandemia no Velho Continente e da gradativa reabertura comercial e social por que passa Paris. "Podemos dizer que, aos poucos, a vida está começando a voltar ao normal", responde.
É impossível conversar com um repórter que cobriu eventos como Jogos Olímpicos, Copas do Mundo (nos naipes masculino e feminino), e que foi correspondente esportivo na Rússia, sem perguntar qual reportagem mais lhe marcou.
"O incêndio da Catedral de Notre Dame e seus desdobramentos, no ano passado. Além de modificar a rotina de Paris foi uma perda cultural muito grande", complementa.
Abaixo, leia trechos da conversa.
Está sendo uma rotina dentro de casa, porém, participo do "Jornal Hoje" quase todos os dias, e também do "Edição das 10h", da GloboNews, e isso pega meu horário da tarde. Geralmente, acordo, dou uma olhada nas notícias, e às vezes saía para fazer compras no mercado. Logo voltava para casa para mergulhar no trabalho, aproveitando o fuso horário do Brasil. O que eu gostava bastante de fazer, e não estou podendo, é sair no fim do dia para encontrar os amigos. Além disso, claro, também gostava de sair para correr ou fazer qualquer outro tipo de atividade física. Mesmo com autorização do governo (para fazer exercícios) durante alguns períodos do dia, optei por não sair nessas últimas semanas. Na França, era obrigatório ter uma autorização para sair de casa. Caso você saísse na rua e fosse parado por um policial sem essa documentação, era multado em cerca de 130 euros.
Estamos entrando na segunda semana de reabertura. Podemos dizer que, aos poucos, está voltando tudo ao normal. É claro que não é aquele normal de antes da pandemia. Comparando o período pré-quarentena, podemos observar uma cidade mais movimentada. Durante o bloqueio total, víamos a Champs Elysee e o entorno da Torre Eiffel completamente vazios, com pouquíssimos carros ou pessoas passando. Hoje, dei uma volta na rua e vi bastante gente. Quase a totalidade é de franceses ou residentes. Não estamos vendo turistas. As fronteiras seguem fechadas, a não ser que você more na França e queira retornar para sua casa. Quem sabe o turismo volte a acontecer em junho e possamos ver a França mais perto daquele normal, com turistas e franceses movimentando os lugares.
É muito difícil dizer se está na hora de afrouxar o isolamento. Acredito que os especialistas estão aí para decidir isso. Há um debate na França se eles não abriram cedo demais. O que podemos observar é que muita gente está confiante no trabalho que está sendo feito. Tanto que o confinamento foi aprovado e bem aceito pela grande maioria da população.
Tenho uma rede grande de amigos brasileiros aqui na França. Quem trabalha para empresas francesas cumpre uma carga horária menor durante a semana. Poucos conhecidos trabalham na linha de frente da saúde e precisam ir aos hospitais. Aos poucos, as pessoas estão tentando se reencontrar para matar a saudade, mas com todos os cuidados devidos. Sem abraço, sem beijo e sem contato físico. Aglomerações acima de 10 pessoas ainda estão proibidas, seja na rua ou dentro das casas. As pessoas com quem me relacionei nesse período foram os vizinhos. Nesses 55 dias de bloqueio total, saí para a rua por necessidade, mais ou menos, dez vezes. Na sexta ou sétima, estava voltando do mercado e passei por um restaurante perto de casa onde um amigo francês trabalha. Ele estava fazendo uma manutenção no local, e foi a primeira vez que eu vi, pessoalmente, alguém que conhecia antes dessa pandemia. Tive a primeira reação de cumprimenta-lo, mas, imediatamente, parei e nos falamos a distância, perguntamos se estava tudo bem. É estranho, esquisito, mas é o necessário. Ainda não há outra solução a não ser o distanciamento social.
Aqui houve, desde o começo, uma coesão entre os poderes. O governo deu o seu recado desde o começo. O presidente foi à TV, falou que o país estava em guerra sanitária e subiu o tom, deixando o povo em alerta. A partir daí, os departamentos, equivalente a governos locais, seguiram essa mesma linha. Claro que há discordâncias sobre algumas medidas, especialmente a falta de equipamentos em algumas áreas e a ausência de suporte ideal para os profissionais de saúde. Há muita comparação com a Alemanha, que tomou iniciativas exemplares no combate a covid-19, inclusive recebendo pacientes franceses em seus hospitais. A mensagem sempre foi que o confinamento seria necessário para abrir posteriormente. Conversando com profissionais da área de saúde, ouvimos que essas medidas fizeram com que as pessoas não se sentissem desamparadas. Não sei se podemos dizer que as medidas na França foram um sucesso absoluto, porque 28 mil pessoas morreram até o momento, mas passa a impressão de que essa mensagem do governo foi bem recebida pela população.
Profissionalmente está sendo uma experiência enriquecedora. Normalmente, cubro mais esportes, mas já tive oportunidade de trabalhar com notícias do dia a dia. No ano passado, cobri o incêndio na Catedral de Notre Dame, produzindo conteúdo para jornais da Globo e da GloboNews. Esse ano, aconteceu esse desafio muito grande e estou expandindo minhas apurações e conhecimentos fora do esporte, o que é sempre valioso. Durante o confinamento, não gravei nada na rua, mas, no primeiro dia do fim do isolamento, fui a uma praça perto de casa para ver como estava e registrei algumas imagens. Voltei para casa um pouco assustado com tanta gente na rua depois de ficar dias vendo quase ninguém. Entrando na segunda semana de reabertura, já estou me acostumando com essa nova realidade. Temos que manter todos os cuidados porque sabemos que o vírus ainda está por aí, especialmente em Paris, que faz parte da zona vermelha.
Mantenho contato diário com eles. Meus pais estavam aqui logo antes de o país se fechar, então percebemos essas mudanças gradualmente. Eles puderam ver com os próprios olhos o que estava acontecendo, viram o pronunciamento do presidente e o decreto de que o país iria fechar. Para nos precavermos, eles anteciparam a volta para o Brasil. Isso teve um efeito positivo, porque, depois de retornarem, aceitaram que o confinamento era necessário. Fizeram a quarentena de 14 dias no apartamento deles, em Vitória, antes de irem para o interior do Estado. Nenhum deles teve sintomas e estão bem durante todo esse tempo, mas viram de perto o estrago que essa doença pode trazer.
Muito difícil saber o que vai mudar e até mesmo esperar uma mudança significativa. Durante o confinamento, você fica refletindo sobre muitas coisas e chega a algumas conclusões. Uma coisa que muita gente relata, e que também senti, é que dá para viver com muito menos do que você acha que precisa, em termos de consumo e bens materiais. Vamos torcer para que essa abertura na França continue e que siga gradualmente, para que não tenhamos uma segunda onda de casos. Não sei como isso vai mudar a sociedade e não sei se vai ser de forma imediata. Isso depende de como vai impactar em cada país.
Comecei em Vitória, fazendo jornalismo na UFES. Depois, participei do curso de residência na Rede Gazeta e entrei trabalhando no jornal e na TV Gazeta. Depois, fui selecionado em um projeto da Rede Globo, chamando "Passaporte SporTV", e fui para o Rio de Janeiro trabalhar no SporTV. Nesse projeto, fui correspondente na Rússia por alguns anos, retornei, e fiquei algum tempo no SporTV e na Globo. Desde outubro de 2018 estou como correspondente na França, colaborando com os jornais da emissora. Para quem está começando, a dica é consumir o máximo de leitura que puder e de áreas diferentes. Conseguimos aproveitar experiências e informações em qualquer área em que atuamos. Outra dica é ouvir bastante as pessoas e se interessar por suas histórias, porque sem isso não dá para seguir na profissão. Precisamos contar o que os outros estão pensando. Isso tem que ser natural, não adianta ser forçado. Todos os grandes jornalistas que admiro têm essa característica de se interessar pelo outro.
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