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"A gente nunca ensina o filho a ser errado. Meu filho pagou com a vida", diz mãe de preso no ES

"A gente nunca ensina o filho a ser errado. Meu filho pagou com a vida", diz mãe de preso no ES

Mães de presos que morreram no sistema prisional capixaba relatam drama da perda e dificuldades em obter informações e apoio psicológico para a família

Publicado em 23 de março de 2022 às 11:47

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Mortes em presídios do Espírito Santo aumentam em meio a cenário de instablidade
Mortes em presídios do Espírito Santo aumentam em meio a cenário de instablidade. (Freepik - Arte: Geraldo Neto)

Tristeza pela perda de um filho, dor pela brutalidade da partida e dúvidas pela ausência de respostas. As mortes no sistema carcerário do Espírito Santo atingem diretamente um grupo, cada vez mais numeroso, de mulheres de periferia. Além de conviver com o luto, elas ainda padecem pela indiferença e até o menosprezo da sociedade.

“Por trás de um preso tem uma família, uma mãe. A gente nunca ensina o filho a ser errado. Meu filho pagou um preço muito alto, pagou com a vida”, afirma Maria*, mãe de uma detenta morta em 2020.

Todos os nomes foram modificados para preservar a intimidade das famílias e evitar que sofram represálias.

Segundo dados obtidos com exclusividade por A Gazeta, em 2021 foi registrada a maior quantidade de homicídios e suicídios dentro das cadeias capixabas pelo menos desde 2015.

A filha de Maria estava detida por tráfico de drogas. Na ocasião da morte, Maria foi informada que ela tinha se suicidado. Mas a família acredita que o óbito possa ter sido causado por terceiros.

A desconfiança surgiu de uma série de acontecimentos que precederam e sucederam o óbito. Dias antes do incidente, por exemplo, Maria havia recebido uma ligação do serviço social do presídio informando que a detenta passava por um período difícil e tinha pedido que a trocassem de cela. A servidora orientou a mãe que enviasse uma carta para lhe reconfortar.

“Diz que houve uma revista na cela. Depois, um (companheiro de cela) falou que se ela não fechasse a boca, a cabeça dela ia rolar", lembra.

Maria também desconfiou das informações que constavam nos documentos oficiais. "No meu laudo (cadavérico, feito pelo legista) saiu ‘suposto suicídio’. Suposto é uma palavra que você usa quando não tem certeza”, aponta.

23 suicídios
foram registradas nas cadeias do ES entre 2015 e 2021

Por isso, ela buscou junto às autoridades respostas para seus questionamentos, mas afirma que foi ignorada. Até para obter o laudo da perícia, a burocracia foi grande. Enquanto a resposta definitiva não vem, Maria é consumida pela tristeza e pela dúvida.

“Eu só quero saber o que aconteceu. É um direito meu de mãe. A gente é mãe. A gente só quer saber porque o Estado não fala com a mãe, não conversa, não oferece assistência psicológica. O estado te ignora porque é preso. Acha que o preso é bicho”, diz, às lágrimas.

Laura, mãe de outro detento, esse morto em 2021, também conta que não recebeu nenhum tipo de assistência. O filho dela foi assassinado dentro da unidade prisional onde cumpria pena por assalto.

Ela se recorda com clareza do dia em que recebeu uma ligação do presídio pedindo que comparecesse ao local. Quando chegou lá, foi informada que houve uma briga na cela e que o filho tinha sido enforcado com um lençol.

“Eu entrei em choque. Perguntei 'morreu?', ele falou 'morreu'. Depois que os presos deram depoimento, a gente descobriu que mataram ele. Deram um mata-leão nele. Falaram que meu filho tinha força, que sabia lutar, então eles só conseguiram matar porque outros dois ajudaram, seguraram no pé”, conta, com tristeza na voz.

Com medo de ver as imagens do corpo do filho que tanto amava, a mãe conta que, embora tenha recebido a documentação referente à morte, nunca leu o conteúdo. "Tem foto dele lá, daquele jeito. Não quero ver. Pedi pra esconder."

Como toda mãe, Laura lembra do filho com muito carinho, embora lamente que ele tenha se envolvido com drogas ainda muito jovem, com 15 anos.

“Ele ficou desse jeito quando começou a usar drogas. Só ele teve esse problema, entre os meus filhos. Mas não agredia ninguém. Ele era carinhoso com os irmãos, comigo. Falava muito bem de mim pros presos, eu visitava ele. Se não fosse a droga, ele nunca teria feito as coisas que fez, era uma boa pessoa”, relata.

Laura ainda tenta se recuperar da perda tão recente. Mesmo com a dor do luto, ela se mantém forte pelas filhas. Uma delas visitava o irmão com frequência, fazia questão de manter contato. 

“Esses dias ela disse 'eu acho que não sou uma pessoa forte'. Minha filha sempre chora quando fala dele e eu tenho que ficar forte por ela. Mas quando ela está no trabalho eu choro também”, revela.

Como Laura, Cláudia* também perdeu o filho assassinado em uma cadeia capixaba em 2021. O rapaz foi espancado até a morte no pátio da unidade. Na documentação da perícia há fotos do corpo do jovem, com muitos ferimentos e hematomas, principalmente na face. A imagem está encrustada nas lembranças da mãe.

"Eu estou tendo problemas psicológicos, estou tomando remédio. Acordo de madrugada vendo ele naquele estado, naquela situação. Vivo o luto, mas vivo também o sofrimento da situação. Ele tinha filhos pequenos, que tinham muito amor pelo pai", conta.

Assim como as demais mães, Cláudio responsabiliza o Estado pelo que aconteceu com o filho dela. Todas as três relatam ter vivenciado durante as visitas um ambiente hostil e cruel, de pouca assistência e muita violência, inclusive por parte das instituições que deveriam zelar pela vida daqueles que estão encarcerados.

"Meu filho entrou vivo dentro da prisão e saiu em uma bandeja, embalado em um saco preto. Ele não era perfeito, mas era uma vida, um ser humano que estava lá dentro para pagar pelo erro dele. Eu entreguei meu filho com vida, o Estado tinha que me devolver ele vivo", protesta.

FAMÍLIAS TENTAM REPARAÇÃO NA JUSTIÇA

Maria, Laura e Claúdia buscam atualmente na Justiça o mínimo de reparação pela perda dos filhos. Embora elas relatem que nenhum dinheiro seria capaz de trazê-los de volta, esperam que pelo menos a família seja indenizada, principalmente nos casos em que os detentos tinham filhos pequenos.

O advogado criminalista Antônio Fernando Moreira, que já atuou em diversos casos desse tipo, afirma que a Justiça do Espírito Santo costuma decidir em favor dessas famílias, mas o Estado recorre. Com isso, esses processos acabam durando anos.

“Ele (Estado) sabe que a causa é perdida para ele. Sempre alegam que não tiveram responsabilidade, que não tem como controlar tudo, que foi um ato de um terceiro, que estão tomando todas as medidas”, aponta.

Ele conta que quando a decisão sai, em geral é concedido entre R$ 20 mil e R$ 30 mil de indenização por pessoa da família.

Além disso, é possível requerer que o Estado pague de volta à família o que foi gasto em despesas funerárias ou até mesmo em tratamento psicológico. Contudo, neste último caso, é preciso provar que a pessoa desenvolveu algum tipo de problema depois da morte do parente.

“Atuei em um caso em que uma detenta que morreu ajudava a família financeiramente. Os irmãos dela eram bem mais novos, ela também cuidava deles. Mas de modo geral, o dinheiro é uma reparação mínima”, ressalta o advogado.

O QUE DIZ A SEJUS

Em nota, a secretaria reconheceu o aumento das mortes nas penitenciárias capixabas e afirmou que elas estão sendo investigadas. Entre as causas apontadas pela pasta estão a pandemia e o envelhecimento da população carcerária.

"No momento podemos afirmar que o fator que mais influenciou esse aumento foi a pandemia do coronavírus, pois a Secretaria teve que suspender as visitas sociais e o serviço de assistência religiosa, o que gerou maior tensionamento nas unidades. Outro fator constatado foi o envelhecimento da população carcerária."

Ainda de acordo com a Sejus, os detentos têm acesso a serviços de saúde em todas as unidades e a pasta tem investido na ampliação do serviço de saúde mental. Todas as atividades da secretaria recebem fiscalização e acompanhamento de órgãos como Defensoria Pública, Ministério Público e Poder Judiciário.

Em relação à falta de assistência relatada pelas famílias, a Sejus informou que fornece, através da sua equipe, o amparo inicial às famílias. "Posteriormente, os familiares podem recorrer aos serviços ofertados pelo Estado, que garante por meio dos Centro de Referência Especializado de Assistência Social o atendimento especializado e continuado às famílias e indivíduos em situação de ameaça ou violação de direitos."

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