Perder alguém querido nunca é fácil. Mas perder para a pandemia, quando não se pode fazer um velório ou abraçar quem compartilha da mesma dor, é ainda mais difícil. A velocidade com que a Covid-19 mata também é cruel: dezenas de milhares de pessoas acabam virando apenas um número.
Acompanhando tudo isso pelos jornais, com aulas e estágio suspensos havia cinco meses, a estudante Júllia Cássia se sentiu impotente. Até que, em agosto do ano passado, ela teve a oportunidade de participar do Inumeráveis – uma plataforma na internet que reúne tributos aos mortos no Brasil pelo novo coronavírus.
A ideia é retratar como a pessoa era e as boas lembranças que deixou. "Com o tempo, percebi que conseguia prolongar a despedida, que a doença não permite. Ajudamos a dar um adeus. A partir daí, senti que era parte integrante desse consolo", diz ela, que já colaborou com a escrita de aproximadamente 30 histórias.
Os relatos são inúmeros – basta lembrar de todas as vidas já perdidas no país. Sempre enviados por familiares ou amigos, eles passam por um processo de apuração, redação, revisão e edição antes de serem publicados. Cada voluntário atua de acordo com a respectiva área e conforme a própria disponibilidade.
"São sempre conversas muito emocionadas. As primeiras que eu tive, duraram mais de uma ou duas horas, porque os familiares lembram das memórias, descrevem as pessoas e acabam pedindo uma pausa. É um envolvimento muito grande", conta Júllia, que, aos 22 anos, estuda jornalismo na Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes).
Sem poder impor preferências pessoais, a primeira história que ela escreveu foi a da carioca Barbara Gleise de Oliveira, que morreu aos 42 anos. "Eu fiquei impactada pela juventude dela. Ela era uma mãe, com uma filha de apenas oito anos. Além de uma mulher que lutou muito para ser dona do próprio negócio", lembra.
"Todas as histórias, embora sejam únicas, têm esse desejo latente dos parentes de descrever cada pedacinho da pessoa: manias, hábitos do dia a dia... É muito gratificante. A gente se emociona com todas as histórias, acaba levando um pouco daquelas pessoas e imaginando como elas eram", confessa.
A primeira vez que o caminho de Júllia se cruzou com o de um capixaba por meio do voluntariado foi em novembro do ano passado, quando ela leu a homenagem feita para Wilson Andriato, durante uma live do Inumeráveis nas redes sociais (veja abaixo). Nascido em Cachoeiro de Itapemirim, ele morreu aos 75 anos.
Porém, a única história conterrânea que coincidiu de a capixaba escrever é a da Creuza de Souza Costa, natural do município de Pancas. "Curiosamente, foi quando fizemos um mutirão para tentar dar os tributos como um presente de final de ano aos familiares. Foi uma das últimas que escrevi em 2020", recorda.
Na seção destinada ao Espírito Santo, o tributo mais antigo data de 18 de maio de 2020 – cerca de dois meses depois do início da pandemia no Estado. É o texto dedicado à linharense Selia Maria Spoladori, de 59 anos. Entre os mais recente, datando de 3 fevereiro de 2021, estão as histórias de Jorge Pedro e Laura Pinto Nunes, de 86 e 65 anos, respectivamente.
Entre todas as homenagens, algumas se destacam, como a do médico Raul Lima dos Santos, de apenas 28 anos. Ele morreu no município de São Mateus, no dia 25 de julho de 2020, mesmo sem ter comorbidades. No outro extremo de idade, há três homenageados com 94 anos: Ordina Teiche Pereira, Gumercindo Lopes de Souza e Ovídio Tragino.
Além de ser um dos mais velhos entre os homenageados capixabas no Inumeráveis, Ovídio Tragino comemorou bodas de vinho ao lado da esposa Luíza Bezerra Tragino, de 90 anos. De acordo com a neta, eles se completavam nas diferenças. "Luíza foi primeiro, para recebê-lo com carinho e cuidado, assim como o tratava em vida. Dois dias depois, Ovídio partiu ao encontro da companheira", lembra Luana da Silva Tragino.
Ao ler os textos, outros também sobressaltam aos olhos, por detalhes: Bernadete Cristiana Marques precisou ser enterrada em um caixão doado, devido à situação humilde da família; Elza Ramalhete lutou bravamente contra a doença por 53 dias intubada; Hamilton dos Santos Noya deixou um filho de só seis meses; e Mirian Fernandes da Silva já tinha encomendado o bolo do próprio aniversário.
Tão próxima dessas e outras histórias, seja lendo ou escrevendo, a capixaba Júllia Cássia garante que é impossível a indiferença. "A cada familiar que falava, a minha consciência foi se tornando ainda mais sensível. Sobre como eu estava agindo, se estava fazendo o vírus circular, pensando nas pessoas, no meu entorno", revela.
Apesar de não ter perdido ninguém para o novo coronavírus, a estudante viu tios e primas se infectarem. "Minha mãe e eu (moradoras do bairro Coqueiral de Itaparica, em Vila Velha) não pegamos. Ainda assim, tive muitos dias desesperadores, em que não conseguia vislumbrar quando tudo poderia voltar ao normal", confessa.
A esperança chegou no último dia 17 de janeiro, quando a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) aprovou o uso emergencial da Coronavac e da vacina de Oxford/AstraZeneca. "Meu desejo é que daqui para frente as pessoas valorizem mais o momento presente ao lado de quem amam, respeitando o espaço e a existência de todos", conclui Júllia.
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