"Vai tomar um banho sua preta suja." "Seu cabelo parece um bombril." "Não sei o que preto está fazendo na internet." Esses são apenas três exemplos de mais de 100 ataques cruéis que a adolescente Nicole Cristina, de 15 anos, sofreu neste ano nas redes sociais – onde acumula mais de 1 milhão de seguidores, entre TikTok e Instagram. A jovem vive em São Gonçalo, no Rio de Janeiro.
A advogada capixaba Fayda Belo da Costa Gomes, que usa o mundo virtual como ferramenta de conscientização, foi marcada em uma das publicações e estendeu a mão para a família da adolescente, que sabia nem sequer que tais atitudes configuravam crime de racismo e injúria racial.
Nascida em Cachoeiro de Itapemirim, no Sul do Espírito Santo, ela se formou em direito graças a uma bolsa integral do Programa Universidade Para Todos (Prouni). Desde então, ela já defendeu cerca de 50 pessoas em casos de cunho racial sem receber nenhum pagamento ou recompensa em dinheiro (pro bono).
"Eu atuo há mais de sete anos e sempre fui próxima à minoria, porque vim de um bairro muito humilde. Cresci vivendo o racismo e vendo mulheres sendo agredidas. Quis usar meu ofício para dar voz a isso. Antes de ter o título de advogada, sou uma mulher preta. Vivi e vivo muito racismo. Sei bem como isso dói", relata.
Até os ataques criminosos virem à tona, Fayda e Nicole se conheciam apenas pela internet devido à criação de conteúdo nas redes. Ao trocarem mensagens sobre o que a adolescente estava enfrentando, a advogada e a família da menina resolveram que levariam o caso à Polícia Civil e à Justiça do Rio de Janeiro.
A mãe de Nicole, a dona de casa Ana Cristina Jesus de Souza, explica que as mensagens racistas começaram após uma gravação viralizar no Twitter em abril. "Antes, as pessoas diziam para ela ir ao salão, se cuidar. Depois, vieram coisas como: 'meu cachorro morreu porque comeu bombril, acho que foi o seu cabelo.'", lembra.
Sem qualquer pretensão de ficar famosa ou virar influencer, Nicole começou a fazer os vídeos depois que passou a ficar mais tempo em casa devido à pandemia da Covid-19. As filmagens são feitas a partir de ideias dela ou da própria família – composta por cinco irmãos mais novos (o sexto está a caminho) e os pais.
Há cerca de um mês, todos vivem em uma casa alugada por uma ONG em São Gonçalo (RJ). "Antes, morávamos em Japeri, uma comunidade muito violenta comandada pelo tráfico. Não tinha água, nem esgoto. A casa era toda quebrada. Era longe de escola e posto de saúde", conta Ana Cristina.
Com os ataques racistas, a vida da família – que sobrevive com o salário de R$ 1.300 do pai de Nicole – ficou ainda mais dura. "Quando ela descobriu, ficou com raiva, até mudou o comportamento e ficou mais agressiva. Ela queria sair do TikTok, não aguentava mais e disse que não queria ser blogueira", desabafa a mãe.
No entanto, como a internet não é um ambiente apenas de ódio, a jovem também recebeu apoio. Além da ajuda jurídica da advogada capixaba, celebridades como a cantora Ludmilla se solidarizaram com a situação. O site Razões Para Acreditar ainda criou uma vaquinha para a família comprar a casa própria.
Há quase duas semanas, a denúncia sobre os ataques de racismo e injúria racial foi protocolada na Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância (Decradi), na capital fluminense. A Polícia Civil do Rio de Janeiro afirmou apenas que as "investigações estão em andamento" e "sob sigilo".
Após tal medida, os ataques cessaram, segundo a mãe da Nicole. "Agora queremos a nossa casa e uma maneira de pegar essas pessoas. Estamos no século XXI, livres da escravidão. Isso não era nem para existir. Somo todos iguais e vem gente fazer racismo contra uma menina inocente, de apenas 15 anos", comenta.
Agora, a espera é pela conclusão do inquérito e a abertura de um processo. "Ainda que usem perfil fake, com outra imagem, a polícia vai achar um a um para responder pelo crime, conforme manda a lei", garante Fayda, que disse ser incapaz de "ver uma pessoa humilde ser rechaçada por conta da cor e se recusar a ajudar".
Questionada se tem esperanças de não ter mais que lidar com esse tipo de caso, a advogada capixaba responde que sim. "Como dizia Martin Luther King, 'eu sonho com o dia em que meus filhos sejam julgados pelo caráter e não pela cor da pele'. Mas, infelizmente, ainda estamos muito longe disso", pontua.
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