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Apesar de lei federal, cartório do ES nega desconto em registro de imóvel; entenda

Apesar de lei federal, cartório do ES nega desconto em registro de imóvel; entenda

Empresária de Vila Velha alega que se sentiu desamparada durante o processo de registro de seu primeiro imóvel; especialistas apontam conflitos em leis e quais são os direitos do consumidor em casos similares

Publicado em 21 de novembro de 2024 às 18:00- Atualizado há 5 horas

Ícone - Tempo de Leitura 7min de leitura
João Barbosa
Repórter / [email protected]

Reunir economias, planejar mudança e atualizar endereços são algumas das fases que compõem o processo da compra de um imóvel. Em busca do sonho da casa própria, cada centavo importa e, no Brasil, tal realização tem se tornado cada vez mais cara, já que o preço dos imóveis têm superado os números do Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA).

Além das dores de cabeça com o planejamento e as altas cifras desembolsadas, um outro incômodo pode atrapalhar o processo de mudança e tornar tudo ainda mais caro: a falta de conhecimento e clareza sobre os direitos dos compradores. Entre tais direitos está o desconto de 50% em taxas cobradas por cartórios para elaboração de documentos como escrituras e registros, os chamados emolumentos.

No país, desde 1973, a Lei Federal 6.015/73 assegura o desconto para pessoas que estão adquirindo o primeiro imóvel através do Sistema Financeiro de Habitação (SFH). Apesar da lei, uma prática realizada por cartórios pode estar gerando prejuízo aos compradores.

A atitude dos órgãos registradores é voltada para a negativa do desconto ou então para a não sinalização do direito do consumidor, o que, no Espírito Santo, deveria ser divulgado de forma clara segundo a Lei Estadual 9.975 que sinaliza que “as corretoras e os cartórios de registro de imóveis situados no Estado ficam obrigados a afixar em seus estabelecimentos aviso informando sobre o desconto de 50% concedido nos emolumentos referentes à aquisição do primeiro imóvel para fins residenciais, financiados pelo Sistema Financeiro de Habitação”.

O que diz a Lei 6.015?

No texto federal, o artigo 290 sinaliza que os “emolumentos devidos pelos atos relacionados com a primeira aquisição imobiliária para fins residenciais, financiada pelo Sistema Financeiro da Habitação, serão reduzidos em 50%”.

Conflito em textos de leis federais gera dúvida aos compradores de imóveis
Conflito em textos de leis federais gera dúvida aos compradores de imóveis. (Freepik)

No caso de uma empresária de Vila Velha que, no início do segundo semestre deste ano, deu entrada na documentação para aquisição de um apartamento, um cartório situado na cidade alegou que ela não teria direito ao desconto pelo fato de o imóvel já ter sido habitado anteriormente, o que é rechaçado por especialistas em Direito Imobiliário.

“Eu dei entrada na compra através do programa Minha Casa, Minha Vida e esse é meu primeiro imóvel. Até onde sei, tenho direito ao desconto justamente porque é o primeiro imóvel no meu nome”, pontua a mulher, que preferiu não se identificar.

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Quando o cartório me negou o desconto de até 50%, me senti injustiçada e sei que não sou o único caso. Recorri à Corregedoria Geral de Justiça, que deu parecer favorável ao cartório e, mais uma vez, me senti desamparada

X.
Microempreendedora individual e moradora de Vila Velha
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Segundo a mulher, a indignação é baseada na dúvida sobre os motivos para que o cartório não aplique os descontos voltados para o acesso à moradia.

“Por que o cartório de Vila Velha é um dos poucos (senão o único) a pedir esse dinheiro a mais (bem alto, por sinal) de quem compra o imóvel pelo Minha Casa, Minha Vida no Estado? Por que onerar ainda mais o cidadão, que já tem tantas cargas a pagar, sendo que tantos e tantos cartórios não fazem essa cobrança? Por que ir na contramão do acesso à moradia?”, questiona a mulher.

Segundo ela, a sensação é de impotência por não conseguir acesso a um desconto que deveria ser voltado a beneficiar quem está comprando o primeiro imóvel.

“Essa é, ou deveria ser, a lógica moral da questão, e não o fato de o imóvel já ter sido habitado antes. Qual a lógica desse entendimento defendido pelo cartório em termos de acesso à moradia? Nenhuma. A lógica financeira pró-cartório não deve prevalecer sobre a lógica humanitária pró-morador”, pondera a empresária.

Especialistas apontam direitos do cidadão

Segundo Sandro Câmara, advogado imobiliário e especialista em Direito Público, apesar de ter passado por variadas alterações ao longo dos anos, a Lei 6.015 ainda prevê o desconto aos compradores que compram imóveis através do Sistema Financeiro de Habitação (SFH).

“Quando o cartório informa que o imóvel já era habitado e, portanto, não poderia haver esse desconto, está equivocado, pois a lei não faz essa ressalva. Ela só estabelece dois requisitos, sendo que um é que o imóvel deve ser o primeiro da pessoa e deve ter sido adquirido pelo Sistema Financeiro de Habitação, no caso, o Minha Casa, Minha Vida”, diz.

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Não há nenhuma ressalva na lei quanto ao imóvel ter sido ou não habitado anteriormente. No caso referido, o desconto de 50% é aplicável, independentemente de o imóvel ser novo ou usado

Sandro Câmara
Advogado especialista em Direito Imobiliário
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O que é sinalizado pelo advogado é reforçado pelo Ministério das Cidades, responsável pelo programa Minha Casa, Minha Vida, que aponta que os cidadãos contam, de fato, com os descontos nas taxas para registro do imóvel junto ao cartório.

Em nota enviada à reportagem de A Gazeta, a pasta federal explicou que os descontos são de 75% para imóveis residenciais adquiridos do Fundo de Arrendamento Residencial (FAR) e de 50% para imóveis residenciais dos demais empreendimentos do programa de habitação popular.

“Sendo assim, caso o cartório avalie que a operação de registro solicitada se enquadra às previsões legais, este deve aplicar as devidas reduções na cobrança dos emolumentos (taxas cobradas pelo custo de serviços prestados pelos cartórios)”, frisa o ministério.

O que o cidadão deve fazer para garantir o desconto?

Para garantir acesso ao direito, os compradores devem comunicar ao registrador o interesse, apresentando a documentação necessária para comprovar o cumprimento dos critérios estabelecidos pela lei. Caso algum cartório negue o que é estabelecido pela lei, o ato pode ser denunciado na Corregedoria Geral da Justiça (CGJ), que é o órgão responsável pela fiscalização do setor.

“Diante de uma negativa, o auxílio de um advogado é recomendável, especialmente para entender às particularidades do caso e para lidar com os contratos envolvidos. De toda forma, existe um canal direto da CGJ, em que a pessoa pode registrar uma reclamação anexando os documentos necessários para que as providências sejam tomadas. O cartório será notificado para prestar esclarecimentos e, se for o caso, corrigir o erro e aplicar o desconto de 50%”, pondera Sandro Câmara.

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Se for comprovada a cobrança indevida, o cartório também pode ser condenado a devolver o valor com correção monetária e juros

Sandro Câmara
Advogado especialista em Direito Imobiliário
Aspas de citação

Cartório aponta outra lei

Procurado pela reportagem, o Cartório do 1º Ofício da 1ª Zona de Vila Velha informou para A Gazeta que se baseia em outra lei e em um decreto para a apresentar a negativa do desconto no registro.

Segundo o cartório, o comprador deve atestar que o imóvel a ser registrado “é o primeiro adquirido, declaração do vendedor, sob as penas da lei, atestando que o imóvel nunca foi habitado e declaração firmada pelo agente financeiro responsável atestando o enquadramento da operação às condições estabelecidas para o Programa Minha Casa, Minha Vida”.

“Há uma razão para o benefício ser dado para imóveis novos e não para usados: o imóvel usado não gera o mesmo desenvolvimento econômico que o imóvel novo. O imóvel novo além de movimentar o mercado imobiliário gera emprego, move o mercado da construção, de modo que os incentivos para imóveis novos devem ser sempre maiores do que simplesmente o usado, já que se trata de “incentivo” por renúncia de receita por parte do estado e dos demais envolvidos”, pontua o cartório, em nota.

O órgão ainda afirma que, desde 2019, quando a gestão atual assumiu o espaço, muitos questionamentos sobre a cobrança foram feitos nas esferas judiciais e administrativas. Entretanto, segundo o cartório, todas as reclamações foram arquivadas, “uma vez que todas as esferas consideraram que a cobrança estava correta”.

De acordo com Helvécio Castelo, diretor de Registro de Imóveis do Sindicato dos Notários e Registradores do Estado do Espírito Santo (Sinoreg-ES), o enquadramento ou não para o desconto depende de vários requisitos definidos na legislação federal. "Os cartórios não têm qualquer espaço para atender ou negar deliberadamente [o desconto no ato do registro], sob pena de sofrer sanções da Corregedoria Geral de Justiça do Espírito Santo, responsável por fiscalizar a atuação de todos os mais de 300 cartórios do Estado".

Já segundo o advogado Diovano Rosseti, também especialista em Direito Imobiliário, o aparente conflito das legislações depende do bom senso dos envolvidos no processo de compra e venda de imóveis.

“Se existe a dúvida e o conflito dos textos, o cidadão pode fazer um requerimento ao próprio cartório ou então à Justiça. No caso, pode ser o primeiro imóvel da pessoa, mas não a primeira habitação daquele imóvel, é nisso que o cartório se baseia para que possa receber o valor integral no ato do registro. Esse conflito infelizmente levará tempo para ser sanado, então, depende do entendimento de cada pessoa para que o processo seja justo para ambos os envolvidos”, frisa.

Sandro Câmara, por sua vez, afirma que, diante de qualquer dúvida, o cidadão deve contar com um profissional do Direito para que todo o processo seja encaminhado da melhor maneira possível.

“A Defensoria Pública também pode ser um caminho para ajudar nesse tipo de situação, a depender da renda do comprador do imóvel. Vale salientar, que se identificada alguma irregularidade ou cobrança indevida, a Corregedoria pode impor a obrigatoriedade de aplicação do desconto e uma possível multa ao cartório. O Código de Defesa do Consumidor prevê que, nesses casos, o cartório pode ser condenado a devolver o dobro do valor cobrado indevidamente”, conclui o advogado.

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