"Quando eu vi aquele caso, só pensei na família, porque a família sofre em saber que não é a primeira vítima nem vai ser a última." O relato é da balconista Francisca Soares, que perdeu o filho de apenas dois anos por bala perdida em 2022, ao se compadecer por mais uma morte pelo mesmo motivo no Espírito Santo. No último dia 25, durante uma madrugada de terror em Vitória, um tiro, que a polícia afirma ter partido do bairro Gurigica, perfurou a parede de um hospital e atingiu um paciente no leito onde estava internado. Ele morreu na hora.
As forças de segurança do Estado ainda investigam o que motivou a sequência de disparos na Avenida Leitão da Silva, na Capital, que acabaram matando Daniel Ribeiro Campos da Silva, de 68 anos. "Estou arrasada, ele era como um pai pra mim. Não caiu a ficha", desabafou a perita criminal aposentada Jerusa Durr Aguiar, familiar do paciente, em entrevista horas depois da morte.
Já Francisca passou pela dor da perda em fevereiro do ano passado, quando o pequeno Theo foi atingido durante um tiroteio entre traficantes no bairro Rio Marinho, em Vila Velha.
Ela estava andando com o menino a caminho da padaria quando um grupo de criminosos passou na rua fazendo disparos. A mãe conta que chegou a se jogar em cima do menino, mas um disparo acertou a cabeça da criança. "Toda vez que vejo um caso (de morte por bala perdida), eu lembro dele. E não teve nenhuma solução, nenhuma resposta do Estado", desabafa.
Não há dados precisos no Estado sobre vítimas de balas perdidas, que contabilizem mortos e feridos. Levantamento feito por A Gazeta a partir de matérias publicadas entre 2019 e 2023 aponta que pelo menos 95 pessoas foram atingidas por engano no período. A maioria dos casos (84%) foi registrado na Grande Vitória.
Desse total de vítimas, 25 eram crianças. Além de Theo, outras quatro morreram. Metade delas foi baleada dentro da própria casa.
O levantamento também aponta que o perfil das vítimas é bem diferente daquelas dos crimes letais intencionais, como o homicídio. No Espírito Santo, mais de 90% das mortes intencionais são de homens entre 15 e 59 anos. Já as balas perdidas, embora menos letais, atingem principalmente mulheres (52%). Um terço deles são idosos ou crianças até 12 anos (34%).
A cidade em que houve mais registros foi Vila Velha, onde quatro pessoas morreram e outras 20 ficaram feridas no período contabilizado. Veja o ranking:
O Espírito Santo não tem dados precisos de vítimas por balas perdidas por dois motivos. O primeiro deles é que a polícia não registra os feridos, apenas os mortos. O segundo é pela definição do que é "bala perdida".
Na linguagem corrente, a expressão é compreendida como qualquer tiro que atinge alguém que não estava envolvido no fato que motivou o disparo de arma de fogo. Já a Secretaria de Estado da Segurança Pública (Sesp) leva em conta a identificação da autoria em sua classificação.
Em resposta enviada para A Gazeta, a pasta esclarece que só considera “bala perdida” a ocorrência na qual uma pessoa é atingida por um projétil de arma de fogo de origem desconhecida, sem que haja elementos que possam indicar ou esclarecer como ocorreu o tiro ou quem foi que atirou.
Casos de pessoas que disparam no meio da rua ou feridos em trocas de tiros de traficantes não se enquadram nessa categoria e são considerados homicídios dolosos ou tentativas de homicídio.
Embora sejam chamadas de balas perdidas, Carolina Ricardo, diretora-executiva do Instituto Sou da Paz — organização não governamental que atua há vinte anos no combate à violência no país — afirma que esses tiros têm destino certo e têm como principal alvo pessoas negras e pobres das periferias e dos morros das cidades.
"Em geral, esse tipo de ocorrência acontece em locais onde os tiroteios ocorrem, seja porque a polícia entra e age, seja por disputas entra facções criminosas. São locais já vulneráveis, que não têm políticas públicas. É onde vive a população negra, jovem, as mulheres e pessoas que estão no dia a dia das comunidades", avalia.
Carolina destaca que, quando o enfrentamento ao crime organizado é feito de forma violenta, por meio de operações policiais e uma política de "chegar atirando", a tensão nessas comunidades aumenta.
"Na grande operação, em locais onde há uma política de confronto, o policial opta por atirar e se preocupa menos com efeitos colaterais. Às vezes, tem um tiroteio e a polícia entra, quando era melhor deixar cessar antes de disparar. Claro que tomar essa decisão não é fácil, há protocolos e procedimentos para decidir apertar o gatilho, mas há também a linha política", pondera.
Na avaliação da diretora-executiva, embora não haja dados estatísticos sobre a questão, o aumento do acesso às armas promovido durante o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) contribuiu para um crescimento de outro tipo de ocorrência, que são os tiroteios banais.
"Seguramente, a maior circulação de arma gera uso equivocado. Temos coletado casos emblemáticos que não são isolados de tiroteios banais, como em uma briga de bar, dentro de boate, condomínio. Nessa troca de tiro pode matar quem está envolvido e quem não está", afirma.
Alice tinha 3 anos quando foi atingida por dois tiros dentro de casa, no bairro Dom João Batista, em Vila Velha, em fevereiro de 2020. Um rapaz de 17 anos que era perseguido por criminosos entrou na casa da família de Alice para fugir, e foi baleado. A menina também foi atingida.
Matheus Xavier tinha 5 anos quando foi atingido por uma bala perdida enquanto passeava com a família na Praia do Morro, em Guarapari, onde passava férias, no fim de 2019 . O alvo do disparo era outra pessoa, que também estava no local.
Pâmela, 23 anos, foi atingida por uma bala perdida dentro de casa no bairro Gurigica, em Vitória, durante uma troca de tiros entre traficantes. Ela estava grávida de sete meses. O bebê sobreviveu. O crime foi em agosto de 2018.
Lucélia de Jesus Souza, 42 anos, saía da oficina de bicicleta de propriedade da família quando foi surpreendida por uma perseguição entre polícia e criminosos. Ela levou um tiro nas costas, chegou a ser socorrida, mas não resistiu. O fato foi em fevereiro de 2022.
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