A pandemia da Covid-19 evidenciou que a falta de controle sobre o uso de telas por crianças e adolescentes é um problema recorrente no ambiente familiar. Mesmo antes de a crise sanitária impor o isolamento, especialistas já relacionavam pelo menos 15 doenças que afetam esses meninos e meninas por ficarem tempo demais ligados aos eletrônicos.
Do aumento da incidência de problemas oftalmológicos, como a miopia, até casos de suicídio são relacionados à utilização desmedida dos dispositivos.
A situação chegou a um ponto em que a Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) avaliou a necessidade de produzir um manual com orientações a pais, educadores e também para o público infantojuvenil sobre a “saúde de crianças e adolescentes na era digital” .
O documento é de 2016, mas foi atualizado, e a nova versão apresentada no início deste ano. Há situações em que as telas devem ser realmente proibidas, como para menores de dois anos, no momento das refeições e de uma a 2 horas antes de dormir.
Também existem contextos em que o necessário é apenas ter mediação de um adulto para que, além do tempo, sejam avaliados os conteúdos a que a garotada está sendo exposta.
O neuropediatra Ricardo Cassa defende que, mesmo nas faixas etárias em que o uso de telas é permitido, o tempo de acesso não seja contínuo, quer dizer, é importante que haja intervalos.
“A exposição à tela estimula o centro de recompensa desse indivíduo, e aumenta a liberação de dopamina, uma substância química do cérebro que tem um papel crucial no desejo. Então, fica fácil de entender o malefício: quando o sistema de recompensa é estimulado em excesso, aumenta também o desejo, e a pessoa desenvolve características que vão lembrar as de um dependente químico”, explica.
O uso abusivo de eletrônicos ganhou tamanha proporção que, lembra o neuropediatra, a Organização Mundial de Saúde (OMS) estabeleceu, no ano passado, uma nova classificação de doença relacionada a jogos: é o distúrbio de games, apresentado como um dos problemas de saúde mental.
“Os jogos são frequentemente utilizados por crianças e adolescentes, e por muitas horas consecutivas. Eles apresentam características de um comportamento compulsivo, se irritam só de pensar que vão parar de jogar. O vício em outras telas também provoca esse comportamento. Às vezes, não querem parar para almoçar, ou não suportam trajetos até em casa sem usar algum equipamento”, analisa Ricardo Cassa.
Compulsão, impulsividade, irritabilidade, ansiedade, transtornos do sono são algumas das condutas observadas em crianças e adolescentes que fazem uso excessivo de telas, segundo relaciona o neuropediatra. Se a utilização dos dispositivos eletrônicos for ainda mais precoce, antes dos dois anos, os efeitos negativos também são significativos.
“A dopamina é um neurotransmissor importante na área da concentração. Então, os mais novinhos vão ter dificuldade no desenvolvimento da linguagem. Depois, começam a ter atrasos na alfabetização e, à medida que vai aumentando a idade, passam a apresentar outras dificuldades de aprendizado”, constata Ricardo Cassa.
Outro problema, já registrado em consultórios médicos, é o aumento na incidência de casos de miopia. A oftalmologista pediátrica Claudia Maestri diz que o excesso de eletrônicos tem provocado a acomodação ocular, uma vez que há um esforço grande para enxergar bem próximo das telas.
“O cérebro, então, vai entender que para focar é preciso ficar perto, e vai haver a acomodação, ao passo que o desenvolvimento da visão (infantil) ocorre a partir de longe”, frisa.
O pediatra Rodrigo Aboudib, coordenador da região Sudeste na SBP, acrescenta que há estudos que demonstram uma relação direta entre uso abusivo de telas e casos de suicídio.
“Tem um gráfico muito claro que relaciona o número de horas de tela com o suicídio. Essa curva é ascendente e, quando ultrapassa as quatro horas de tela por dia, o aumento é exponencial”, sustenta Aboudib.
Todo indivíduo apresenta comportamentos derivados tanto da parte genética quanto do ambiente. Os dois combinados resultam em sinais e sintomas mais acentuados, que podem ser passageiros, permanentes ou desencadear transtornos mais sérios do campo psicológico.
Não bastassem os riscos à saúde, a utilização de eletrônicos de maneira excessiva, e sem a supervisão de um adulto, torna crianças e adolescentes mais suscetíveis à ação violência.
O médico Marco Antônio Chaves Gama, membro do Grupo de Trabalho de Saúde na Era Digital da SBP, chama a atenção para a prática do grooming, uma expressão em inglês que significa aliciamento. O bandido se passa por uma pessoa da faixa etária de quem está tentando seduzir e, aos poucos, obtém informações que vão facilitar o crime.
“Se não há uma boa comunicação em casa, essas crianças e adolescentes se tornam presas no mundo digital. Ali, se encontra de tudo, e tem muita gente ruim. A pessoa é sedutora, faz parecer a idade do adolescente, que começa a desabafar, contar situações da família. Em determinado momento, o criminoso fala: ‘eu sei onde seu pai trabalha, onde está a sua mãe. Se não tirar a roupa para mim, eu mato um dos dois’. E aí, ele tira”, exemplifica.
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