Uma das certezas da vida é a morte. Neste momento do último adeus a entes queridos, surge uma figura geralmente discreta, mas não menos importante: o coveiro. Responsável por sepultar aqueles que se foram, o profissional apenas costuma ser lembrado na hora em que atua, e não raramente é alvo de julgamentos equivocados das pessoas por serem associados à dor da perda alheia.
Na profissão desde 2006, quando foi aprovado em primeiro lugar no concurso público da Prefeitura de Guarapari, Fabrício da Silva Pascoal, de 46 anos, se incomodava com o estereótipo que recaía sobre o trabalho e decidiu criar um canal para explicar a rotina dele em meio aos túmulos, e mostrar que a função que exerce é digna, importante e merece respeito. O sucesso nos vídeos no Youtube foi tanto, onde já conta com mais de 60 mil inscritos, que ele decidiu ir além - didático e bem-humorado, ele narra as exumações, limpezas e mostra tudo o que faz no dia a dia.
"Antes de virar coveiro eu já era pedreiro, mas autodidata, não tinha formação. Quando fui me inscrever para o concurso, vi que teria dificuldade em comprovar minhas qualidades, pois não tinha formação alguma. Então fui orientado a tentar na vaga para coveiro porque não exigia 'papel' nenhum. Minha esposa não gostou muito, mas passei e, em fevereiro do ano seguinte, comecei a trabalhar. Fiquei uns três meses no Cemitério São Tobias, mas logo fui transferido para o São João Batista, o mais antigo da cidade, onde estou até hoje", contou o sepultador.
O novo ofício mudou a vida dele e da família. Seja em um aniversário, uma ida simples ao supermercado de Guarapari ou até mesmo enquanto trabalha, quase que diariamente ele é questionado se não tinha medo em ser coveiro. A resposta sempre foi não, mas pouco convencia os curiosos. Para então resolver o descrédito que a profissão historicamente carrega e sanar as dúvidas dos curiosos, ele criou, há um ano e meio, o canal na internet. Não era o objetivo, mas o meio passou a fazer sucesso e a coisa "fugiu ao controle", como o próprio narra.
"Nunca foi minha intenção ser famoso ou algo do tipo com o canal, só que as pessoas tem muita curiosidade sobre o trabalho, pois há muitas histórias, mitos e inverdades a cerca do imaginário que envolve o espaço de um cemitério. Além disso, antigamente o função de coveiro era associada a cachaceiros, homens rabugentos e ociosos na cidade. Sou de Rio Novo do Sul, cidadezinha aqui do Estado e por lá assim eram descritos os coveiros. Só que não tem nada disso, então fiz o canal para explicar inicialmente essas coisas, mas que cresceu demais (risos)", salientou Fabrício, que mudou-se para a Cidade Saúde em 1988, aos 13 anos de idade.
Por trabalhar no Cemitério São João Batista, histórico tanto na formação da cidade como na teledramaturgia (entenda mais abaixo), é no tempo livre que Fabrício grava para o canal "Vídeos Aleatórios do Coveiro". E são os trabalhos de exumação, nos quais explica todos os procedimentos, que mais repercutem entre os inscritos no canal dele. Para evitar contratempos, questionamentos das famílias e também da própria administração do cemitério, ele não identifica os túmulos, nem os corpos exumados que aparecem nos vídeos.
"Guarapari tem dois cemitérios municipais, o São Tobias, que é bem maior e mais novo (construído em 1970), e o São João Batista (de onde deu a entrevista). Aqui está muito da história da cidade, já que foi construído e 1906, então as famílias mais tradicionais e antigas são proprietárias dos túmulos. Quase 90% são passados de geração em geração. Então sempre que é preciso realizar um novo sepultamento, preciso antes exumar os restos mortais de quem lá estava, limpar e preparar para receber esta outra pessoa. Aí eu mostro abrindo o que restou do caixão, as ossadas e explico que não há nada de sujeira, corpos putrefados e aquilo tudo que muitos pensam que lidamos diariamente. É o que as pessos mais pedem no canal", detalha o coveiro.
Como os sepultamentos não são diários - são 350 sepulturas existentes e com raríssimos espaços para outras novas - Fabrício dedica um pouquinho do expediente aos seguidores. Literalmente sem medo do que faz, ele conta com muito conhecimento de causa os tipos de exumação, uma das funções do coveiro.
Sempre que realiza uma exumação, os restos mortais são acomodados em sacolas e, posteriormente, são recolocados no próprio túmulo, ou para onde a família queira destinar. O procedimento, segundo ele, ocorre em várias situações, sendo que a mais comum é para um novo enterro. Na sequência, é quando ocorre um pedido por limpeza vinda dos proprietários do espaço, e por fim, quando, por ordem judicial, um corpo precisa ser exumado.
"Tudo o que está aqui é matéria que se decompõe, não estou atrapalhando o descanso de ninguém e trato com muita dignidade. A alma já está descansando. Além disso, nunca vi nada e imagino que nunca verei uma 'alma penada', porque não tem nada para se ver. As pessoas temem, mas não existe. Deixo isso muito claro quando faço as exumações", detalha.
Nos 22 minutos agradáveis de conversa ao telefone com a reportagem, o único momento em que Fabrício Pascoal mostrou-se mais sério foi ao detalhar o contato com os familiares dos defuntos. Na pandemia do coronavírus, ele detectou uma necessidade comum e crescente. É com o método próprio que desenvolveu que ele atua como "psicólogo" e tenta confortar aqueles que estão enlutados.
"No mês de abril enterramos 13 pessoas aqui, sendo que o normal são 3... 4 sepultamentos mensais. Por conta das restrições sanitárias, os enterros são presenciados por poucas pessoas, à distância, e isso abala demais os familiares. Imagine só na hora do último adeus você não pode nem estar muito perto de quem tanto amou. Então eu converso, trato o morto com dignidade e admito que já flexibilizei ao permitir que parentes se aproximassem do caixão para uma despedida mais digna. A dor do outro também dói em mim. A profissão nos ensina a criar uma casca, mas não é sempre que conseguimos manter a postura. Já sepultei amigos aqui. Também falo disso nos vídeos", explica.
Tendo estudado somente até a oitava série, Fabrício usa da excelente forma de se expressar, fruto do hábito de leitura que carrega desde a infância, para atenuar a sensação de perda de quem deixa um parente no Cemitério São João Batista.
"Tive que parar de estudar muito cedo para trabalhar, mas nunca deixei de ler. Quando menino eu almoçava e já pegava o livro, então conheci palavras, expressões e tudo isso me ajuda nessas horas", complementa Fabrício, que tem em um dos braços um crânio tatuado - é parte da explicação que usa para "provar" aos mais curiosos a profissão que exerce.
No geral, segundo Fabrício, a profissão de coveiro é subvalorizada e ganha pouco (na faixa de um salário mínimo). O canal, inicialmente explicativo, se transformou em renda extra, mas nada comparado à segunda ocupação que exerce quando não está no cemitério.
Os vídeos acabam que geram uma monetização então vem um dinheirinho, mas coisa pouca. Alguns fãs também ajudam com doações por acreditarem e gostarem do que faço aqui e mostro nos vídeos. É uma ajudinha boa, mas sigo sendo pedreiro também, pois consigo uma renda maior e dou mais conforto à minha esposa e meus dois filhos. Só que o que mais gosto é do reconhecimento do público. Quando dizem que acalento, que transmito paz, já vale meu dia", conta.
O Cemitério São João Batista não é dos maiores e fica na região conhecida como "Guarapari Velha", perto da Praia das Virtudes. O local pode parecer discreto, mas carrega uma história quase secular e que inspirou a teledramaturgia brasileira. Já ouviu falar na novela "O Bem-Amado", exibida na década de 70? Pois bem, a mesma foi inspirada em um "causo" local, como já mostrado no "Capixapédia" de A Gazeta, em 2015.
A novela, dirigida por Régis Cardoso, é uma adaptação da peça O Bem-Amado e Os Mistérios do Amor e da Morte, escrita por Dias Gomes em 1962. A história gira em torno de Odorico Paraguaçu (Paulo Gracindo), um político populista e corrupto, prefeito do fictício município de Sucupira, no litoral da Bahia. Elege-se prometendo inaugurar um cemitério em uma cidade em que ninguém morria. O campo santo, construído em 1906, esperou por 10 anos por um defunto que o inaugurasse, feito que ocorreu apenas em 1916.
Segundo a crendice popular, Dias Gomes, ao saber da história local (Guarapari), visitou a cidade e construiu o enredo transformado em folhetim diário. Já orgulhoso do que faz, Fabrício se diz ainda mais agradecido por dar continuidade à história do cemitério.
"Quando comecei a trabalhar como coveiro, já cheguei aqui sabendo dessa história. Como está construído em uma região de muitas casas de família, todo mundo garante que a inspiração para a novela veio daqui. Me sinto até honrado em contar isso e, ao mesmo tempo, é engraçado porque não morria ninguém para inaugurar cemitério. Era mesmo a cidade saúde", brincou Fabrício.
O Cemitério municipal São João Batista apenas foi inaugurado quando Guarapari "pegou emprestado" um corpo de uma andarilha que havia falecido em Anchieta, cidade vizinha, para sepultar. A medida do então prefeito, na ficção e vida real, acabou com a falação e suspeita de que o local havia sido construído para desviar dinheiro público.
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