Chega uma notificação no celular e, na tela, a mensagem: "Tô (sic) com saudades de abraçar e beijar; de ficar juntinho de você". A resposta, pouco depois, "eu também tô (sic) com saudades", é mais uma demonstração de afeto. Em meio a figurinhas de corações, também se revelam algumas palavras de fé. O registro é da última troca de mensagens do técnico de informática Carlos Alberto dos Santos, 58 anos, e a esposa Aparecida Barcelos dos Santos, 54, um dia antes dele ser internado com Covid-19. Carlos morreu 18 dias depois, devido a complicações da doença, assim como milhares de outros capixabas que perderam a vida para o coronavírus.
Casados há 31 anos e pais de quatro filhos, Carlos e Aparecida permaneceram cinco dias se vendo através da porta de vidro - esposa na varanda, marido na sala - e conversando por mensagens antes da internação, quando ele foi intubado e ficou desacordado.
"Ele tinha começado a sentir cansaço e tosse forte quatro dias antes, até que, em uma das idas ao hospital, o médico disse que poderia ser Covid, por isso passamos a fazer o isolamento", conta. Aparecida era obrigada a manter a distância do marido também por ter diabetes, um dos fatores de risco para infectados pelo coronavírus.
Carlos e Aparecida viviam grudados o tanto que podiam e construíram uma família com quatro filhos: Amanda, Beatriz, Daniel e Lucas, todos adultos. Carlos foi o primeiro amor de Aparecida, que o conheceu dentro de um ônibus, no qual ela ia para as aulas do ensino médio, e ele para o trabalho em Viana.
"Como ele trabalhava das 18 horas à meia-noite, com apenas uma folga por semana, a rotina da casa era de acordo com o horário de trabalho dele. Era tudo para nós, nossa base, o elo, o meu primeiro namorado e uma pessoa muito correta. A sensação é de ter um buraco aberto", lamenta.
Quando começaram os sintomas, cada vez mais intensos, os cuidados com Carlos ficaram sob responsabilidade dos filhos. "Eles passaram a se revezar para ficar com o pai, dar os remédios e até acompanhá-lo ao hospital. Carlos não queria ir, até chegar o dia 23 de maio, de madrugada, quando ficou fraco ao ir ao banheiro e acatou que precisava ir. Sentia cansaço demais", lembra a esposa.
E assim Carlos saiu de dentro de casa, levado pelos filhos para o Pronto Atendimento da Praia do Suá, em Vitória. Aparecida não o veria mais, apesar de não acreditar que o coronavírus venceria a batalha. Ele não tinha doenças pré-existentes, fazia musculação e era extremamente rigoroso com os cuidados de higiene, antes mesmo da pandemia.
O coronavírus já havia levado o emprego de um dos filhos e o estágio de outro. A renda da família dependia muito de Carlos. Nem assim, a família deixou de viver os momentos de isolamento social dentro de casa da forma que mais gostavam: com alegria, como mostra o vídeo.
No Pronto Atendimento, Carlos logo foi intubado e, em seguida, levado para o Hospital Dr. Jayme Santos Neves, na Serra. Todo dia, um dos filhos ia ao hospital para conseguir uma informação sobre o estado do pai. "Muitas vezes eram horas que eles ficavam esperando para, no final, ouvir: 'segue grave e estável.' Somente uma das nossas filhas, Beatriz, conseguiu vê-lo, um único dia", recorda Aparecida.
A angústia dos quatro filhos e da esposa era grande à noite. Em casa, toda madrugada, por volta das 3 horas, eles se reuniam e oravam. "Colocamos nas mãos de Deus o que tivesse que acontecer. Os médicos haviam avisado que poderíamos receber um telefonema. Na madrugada de 9 de junho, o telefone do meu filho tocou, sabíamos o que era. E juntos, como sempre, nós cinco seguimos para o hospital para receber a notícia do que já sabíamos. Eu não mais veria o meu marido", relembra.
Nove dias depois, Aparecida conseguiu um emprego de auxiliar administrativo. "No começo não me senti confortável, vivia e ainda vivo o luto da perda, mas depois vi que era um sinal para que nossa família seguisse. Um dia a pessoa está ao seu lado, no outro ela não responde mais você nem no telefone. É muito triste, mesmo entendendo que era o momento do meu marido, a vontade de Deus. Ele ainda está todos os dias comigo, pois o tenho em meus filhos", completa a viúva.
A tragédia provocada pela pandemia também atingiu a família da dona de casa Ana Maria Paes Mota, 70 anos. Ela e os filhos guardam um registro do aposentado Gilson Costa Mota, 76, dias antes de o marido ir para o hospital com um quadro grave de infecção pelo coronavírus. De lá, ele saiu 21 dias depois para ser enterrado.
Em um vídeo, Gilson se diverte fazendo uma declaração e mandando um grande e inusitado "eu te amo" para os familiares. O que eles não sabiam é que aquele seria o último registro risonho e carinhoso dele, feito no sítio onde passavam quarentena, exatamente para se protegerem da Covid-19.
"Nós estávamos havia cinco meses em quarentena, em um sítio em Paraju (Domingos Martins), quando decidimos fazer um encontro com a família, para o Dia dos Pais. Todos nós sem máscara, filhos e a família da minha irmã. Acredito que foi aí que ele pegou", lamenta Ana.
Era início de agosto. De repente, apareceu uma tosse em Gilson e nos demais familiares. O mal-estar do aposentado, porém, aumentou rapidamente. A família toda foi para um hospital particular de Vitória. Os exames mostraram que Ana, o marido e um dos filhos estavam infectados, como mostra a conversa com uma das filhas, Fernanda.
"Viemos todos para casa, mas quem estava passando mal ainda era o Gilson. Por quatro dias tomamos remédios e melhoramos, menos Fernanda e meu marido, que tiveram que retornar para o hospital. Fernanda foi e acabou indo direito para o CTI. Ele não quis ir, disse 'eu vou dormir e ficar bom', mas durante a madrugada desmaiou", revela a esposa.
De imediato, Ana e o filho levaram Gilson para o hospital, onde permaneceu por dois dias no oxigênio até ser intubado.
"Numa chamada de vídeo, falei com a médica uma vez. No fundo, ele aparecia sentado. Ao final, eu falei 'eu amo você, você é forte e corajoso e estamos orando aqui.' Me devolveu um 'eu te amo', como no vídeo, que não era de falar. Meu marido estava se despedindo", acredita a esposa.
A filha de Ana e Gilson, Fernanda, ficou seis dias internada e saiu. Angustiada em não poder ver o pai por dias, ela retornou ao hospital e pediu ao médico que a deixasse olhá-lo.
"Ao retornar, minha filha disse 'graças a Deus falei com ele, disse que eu o liberava para ir embora'", lembra a esposa. O momento e a angústia fizeram com que Ana e o filho fossem também ao hospital para visitar Gilson, pois o pulmão dele já não respondia mais ao tratamento. "Era a nossa despedida", emociona-se.
Para Ana, a Covid-19 levou mais que um marido, levou o companheiro da vida. "Gilson era maravilhoso, um pai encantador e era amado por todos. Essa doença é terrível. Nem sequer teve um funeral digno. Foi aquela visita e depois nunca mais o vimos mais. Entrou com vida e acabou ali. Ficamos agora com as lembranças belíssimas que ele deixou, com os filhos e o neto que representam ele. O tempo junto foi especial demais", valoriza Ana, que usa o vídeo de Gilson para acalmar os dias que a saudade insiste em machucar mais o coração.
Havia dois meses que o professor Jocival Marchiori, 55 anos, estava aposentado quando pegou Covid-19. Como trabalhou por anos das 7h às 23h, pois por anos foi diretor da maior escola estadual de Linhares, a aposentadoria fez com que ele passasse a usar ainda mais os aplicativos de celulares e tivesse tempo para viajar.
"Meu pai passou a fazer chamadas de vídeo para mim. Isso me fazia muito bem. Fora que foi me visitar em São Paulo, onde moro, e dizia que as viagens iriam aumentar já que estava aposentado", conta o projetista mecânico, Jordan Marchiori, 27 anos, único filho de Jocival.
Uma das provas que a vida de aposentado estava altamente conectada foi a distribuição da foto da carteira de aposentado de Jocival. "Ele mandou para todo mundo", comenta o filho.
Quinze dias depois de visitar o filho em São Paulo, Jocival começou a apresentar os sinais da infecção. "Ele reclamou de sintomas como tosse e falta de ar, disse que achava estar gripado, numa sexta-feira. Passou sábado, domingo e a situação piorou. Na segunda-feira, foi internado e o intubaram. Minha mãe me avisou, eu desesperei, pois, tive um pressentimento muito ruim. Dirigindo de São Paulo até Linhares, pois não tinha avião, era início de março", recorda Jordan.
Internado em um hospital em São Mateus, em março, quando tudo relacionado ao coronavírus ainda era algo muito novo, nem a equipe médica sabia direito como lidar com a situação. "Foram 11 dias de internação do meu pai quando, às 4 horas do dia 9 de abril, o telefone da minha casa toca. Já sabíamos que o que era, enterrei um caixão que nem sei se realmente era meu pai ali. Lacrado, sem velório, sem abraço e sem despedidas", descreve Jordan.
Jocival se dedicou por 30 anos ao trabalho no Colégio Estadual de Linhares. "Meu pai era muito dedicado e tinha empatia com os outros. Fez tudo pela nossa família, em especial por mim. Deu a mim o melhor do estudo, acreditava que só a educação poderia mover o mundo. Incentivava a música e o esporte. Agora, com a aposentadoria, estava começando a viver bem", aponta o jovem.
O filho conta que foi Jocival quem fez de tudo para que pudesse estudar. "Ele me oportunizou estudar sem trabalhar, estudar em boas escolas, fazer intercâmbio. Muito diferente da realidade que ele teve, pois, aos 16 anos, perdeu o pai e teve que começar a trabalhar. Eu queria ser a metade do que ele foi", reconhece Jordan.
Jordan preferiu não publicar as mensagens do pai porque Jocival mostrava-se aflito com a falta de ar antes da internação. "Era um grande homem. Eu espero ser o espelho dele", finaliza.
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