Mesmo classificado como crime e passível de punição, o racismo está presente no cotidiano da sociedade. De janeiro até o último dia 13 de novembro, o Espírito Santo registrou 135 casos de racismo e injúria racial. Ao longo de todo o ano passado, foram 140, contra 90 registros em 2021. O problema não só existe, como persiste e segue crescendo.
Os dados, apurados a partir dos boletins de ocorrência registrados junto à polícia, são da Secretaria de Estado de Segurança Pública e Defesa Social (Sesp). Contudo, a notificação nem sempre ocorre, e especialistas ouvidos por A Gazeta apontam que a discriminação ocorre das mais diversas formas, e, em certos casos, sua gravidade nem mesmo é percebida por quem dá voz ao preconceito.
O racismo estrutural é tido como herança do período da escravidão, em que prevalecia a ideia de que alguns grupos eram inferiores a outros, devido à cor da pele, se alastrou e criou raízes — um preconceito que moldou a sociedade, mantendo sempre parte da população em desvantagem.
A professora Kiusam de Oliveira, que ministrou a disciplina Educação das Relações Étnico-Raciais na Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) até 2019 e atualmente roda o país dando palestras sobre o assunto, pontua que, no caso do Brasil, “todo o progresso foi construído em cima do racismo estrutural”, que é aquele assimilado desde a infância.
“Nesse sentido, racismo estrutural é aquele que está na base de todo o processo pedagógico da nossa sociedade, de olhar para negros, indígenas, e entendermos como pessoas que valem menos por conta da cor da pele.”
O racismo estrutural é base para outras formas de discriminação.
Kiusam observa ainda que o racismo estrutural, acaba, frequentemente, sendo internalizado. Isto é, de tanto vivenciarem experiências racistas e ouvirem que valem menos pelo simples fato de serem negros, muitos passam a acreditar nessa ideia, ainda que de maneira inconsciente, e passam a não se aceitar como são.
“De tanto a gente ouvir uma determinada coisa, sem que a gente tenha uma estrutura emocional para suportar aquilo, aquela carga negativa que estão jogando para cima de nós, nós sucumbimos e passamos a acreditar nisso. É o que acontece com a criança negra, que passa a acreditar que vale menos por conta da cor da pele, por conta do cabelo dela.”
A professora ainda relata: “Na minha experiência de quase 40 anos em sala de aula, vi crianças com 4 anos dizendo: ‘não quero ser preta’. Do jeitinho delas, mas dizendo que não querem ser pretas. ‘Porque meus coleguinhas da sala de aula, não querem brincar comigo, dizem que meu cabelo é duro, que meu cabelo é ruim, que o pai e a mãe dela disseram que não é pra brincar com pessoas pretas’. E aí começa a auto-perseguição, o auto-ódio que a pessoa negra desenvolve por si mesma. isso começa lá na primeira infância, então é um racismo que é internalizado.”
O racismo recreativo também deriva do racismo estrutural, e é o que ocorre sob a alegação de diversão, passando por fantasias estereotipadas, pelos apelidos, mas, principalmente, pelas piadas, conforme aponta o professor de Direito da Faesa Paulo Vitor Lopes Saiter Soares.
“O racismo é muito comum nas piadas, no stand-up, em falas com o intuito de diversão, que acabam reproduzidas na sociedade, mas também é vedado na legislação de combate ao racismo.”
Nesse sentido, a professora Kiusam de Oliveira avalia que os homens são os principais alvos do racismo recreativo, que os persegue desde a infância.
“Logo no ensino fundamental, os meninos negros passam a não ter mais o uso do nome próprio nos espaços escolares. Eles passam rapidamente a ser chamados e conhecidos por apelidos. Eles viram o Pelé, viram o Negão, viram o Buiú, e assim por diante, envolvidos de piadinhas… Eles viram esse corpo que é alvo de piadas, e quando eles se chateiam, vão sempre dizer que ‘é brincadeira’. Mas o contrário não é verdadeiro, o contrário não acontece da mesma forma.”
Quando os atos discriminatórios ocorrem no âmbito de uma instituição ou sistema, como escola, empresas ou órgãos públicos, levando ao tratamento desigual de pessoas com base na raça ou etnia, é caracterizado como racismo institucional.
“É o que ocorre quando alguma instituição específica reproduz maiores práticas do racismo, como às vezes percebemos (atos de) alguns órgãos de polícia na sua investigação. Você analisa aquela instituição e percebe que ali há uma reprodução de práticas racistas”, frisa Paulo Vitor Saiter.
Esse tipo de racismo é detectado quando percebe-se que bairros periféricos recebem menos infraestrutura e menos investimentos que regiões centrais das cidades.
“O racismo ambiental empurra para as periferias as pessoas pobres e, normalmente, as pessoas pobres têm cor, a pobreza tem cor, e todas essas categorias de racismo são facilmente comprovadas com estatísticas. As pessoas negras moram nas periferias, as periferias recebem menos investimentos que outras áreas mais nobres de qualquer cidade. Inclusive, as escolas que estão nos bairros periféricos recebem menos investimentos que outras. Esse é o racismo ambiental”, frisa Kiusam de Oliveira.
Paulo Vitor Saiter vai além e reforça que população negra, a população mais periférica, acaba sofrendo com a falta de acesso à água, ao saneamento, à proteção ambiental. Sofre também com inundações com maior frequência, e tudo isso acaba sendo uma forma de racismo, segundo ele.
É aquele em que o que é produzido por pessoas negras, geralmente periféricas, é tido como cultura popular e menosprezado em relação à cultura erudita, de elite, inclusive no momento de distribuição de verbas para realização de eventos e projetos.
“Um exemplo dessas diferenças, desse racismo cultural, é quando, abre-se um edital focado em dança, e a gente inscreve um espetáculo da gente, que é dança afro, falando da questão racial, nessa categoria. Daí a gente recebe os projetos de volta, não contemplados, com uma justificativa para a gente procurar no próximo ano a categoria cultural, a categoria folclórica, como se a dança negra só pudesse estar inserida no que é folclórico”, cita Kiusam.
O racismo religioso também ocorre, muitas vezes, no âmbito recreativo. Kiusam de Oliveira relembra que muitas meninas que seguem religiões de matriz africana, por exemplo, são atacadas ainda na escola.
O termo pejorativo ‘neguinha da macumba’ é um fenômeno muito comum nas escolas, segundo Kiusam. Ela percebe que, em diversos Estados, essa forma de se referir a uma menina que frequenta uma religião de matriz africana é recorrente e, geralmente, está envolvida em piada, mas, no fundo, trata-se do racismo religioso.
As religiões de matriz africana também são perseguidas no Brasil e, na avaliação da professora, sobretudo por uma falta de conhecimento total que envolve o pensamento colonial.
- Injúria racial: é a ofensa dirigida a uma pessoa ou a um grupo individualizado, se valendo de elementos referentes à raça, cor, etnia, religião ou origem.
- Racismo: previsto na Lei n. 7.716/1989, é quando a conduta discriminatória é dirigida a determinado grupo ou coletividade, sendo impossível a individualização.
*Com a Lei 14.532, de 2023, crimes de injúria racial passaram a ser equiparados ao de racismo, passando a ser inafiançáveis, imprescritíveis e punidos com prisão de 2 a 5 anos.
Kiusam de Oliveira frisa que o enfrentamento ao racismo deve começar ainda na infância, em casa e na escola, com o letramento racial e o entendimento sobre as diferenças, não como algo excludente, mas tão somente diverso.
“Eu jamais direi que as crianças são racistas. Elas são capazes de reproduzir a prática racista que elas veem pais, mães, irmãos mais velhos, enfim, o entorno dela realizando. A criança reproduz. Agora, se ela não tiver o ciclo da violência racista cortado, ela poderá se tornar uma pessoa racista aos quinze, dezesseis anos, e aí vai sim dizer ‘porque é pobre’, ‘porque é preto’. Mas quando a criança está no processo de formação, há formas de interromper esse ciclo.”
Paulo Vitor Saiter, por sua vez, observa que é preciso garantir o acesso de pessoas negras aos espaços de poder, de forma que mudanças sejam alavancadas mais rapidamente.
Além disso, ele reforça a necessidade de investimentos em políticas afirmativas, não apenas por parte do poder público, como da iniciativa privada.
“A gente precisa trabalhar em todos os setores — políticos, jurídicos, econômicos — com políticas afirmativas. É necessário cada vez mais intensificar, ter realmente a possibilidade de pessoas negras, pessoas com deficiência, pessoas indígenas, pessoas de qualquer minoria que seja terem acesso aos espaços políticos de representação, de poder, de decisão, e não simplesmente serem acessórios", conclui.
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