Em praticamente duas semanas, o Espírito Santo dobrou o número de mortes por Covid-19 e passou de mil casos fatais. São 1.028 mortes e 26.011 casos confirmados até a tarde deste sábado (13). A velocidade, até agora, revelou um ritmo acelerado da transmissão da doença, e essa taxa de contágio vai continuar determinando quantas famílias ainda vão ser afetadas pela tragédia que é a pandemia do coronavírus no Estado.
Pós-doutora em Epidemiologia e professora da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), Ethel Maciel aponta que ainda haverá um número grande de mortes no Estado, decorrentes da infecção pelo coronavírus, pelo menos até o final de junho.
"E o que nos causa mais angústia é saber que são mortes que poderiam ser evitadas", lamenta a especialista, também integrante do Núcleo Interinstitucional de Estudos Epidemiológicos (NIEE) que oferece assessoramento técnico para o governo do Estado na tomada de decisões relacionadas à Covid-19.
Questionada em que fase o Espírito Santo se encontra na curva de transmissão da doença, Ethel observa que, no Brasil, diferentemente de outros países, a tendência de queda não se confirmou a partir do 50º dia de registro do primeiro caso confirmado. Ao contrário. No Estado, passamos de 100 dias ainda em crescimento.
"No país todo continua subindo, e uma curva ascendente firme. Esse cenário pode estar relacionado a características da população, a aspectos climáticos e a outras variáveis que ainda não conseguimos explicar. Pode ser também porque, por aqui, não foi feito o isolamento de maneira séria", pontua.
Ethel pondera que, além daqueles que desrespeitam deliberadamente o distanciamento social, aspectos socioeconômicos também contribuem para o descumprimento e a maior disseminação da doença, mantendo a taxa de transmissão elevada.
A professora cita como exemplo uma pessoa com sintomas gripais que, ao procurar uma unidade de saúde e não ter indicação para teste, é orientada a ficar isolada em casa, por 14 dias, e só retornar ao posto se piorar.
"Pensa se alguém que está na informalidade vai deixar de trabalhar. Não vai, e ainda passará o vírus para outras pessoas, além de correr o risco de evoluir para um quadro mais grave. A orientação de isolamento para essa parcela da população não funciona; precisa de testagem e, se houver resultado positivo, aí sim é mais fácil convencê-la a não sair de casa. A estratégia da OMS (Organização Mundial de Saúde) sempre foi a de testar e isolar", sustenta.
Para medir a prevalência da Covid-19 no Espírito Santo, a Secretaria de Estado da Saúde (Sesa) está realizando inquérito sorológico na população. Com o trabalho, é possível identificar a taxa de contágio da doença e fazer projeções de sua evolução.
A terceira fase, encerrada na última quarta-feira (10), apontou que, estatisticamente, 295.773 pessoas tiveram contato com o novo coronavírus no Espírito Santo. A quantidade corresponde a 7,36% da população do Estado. Os resultados apontaram ainda que taxa de transmissão no Estado está em 1.6. Na Grande Vitória, está em 1.5, e de 2.1 no interior.
Na nota técnica mais recente do Núcleo Interinstitucional de Estudos Epidemiológicos (NIEE), a análise do comportamento da doença no Estado indica que, se a taxa de transmissão ficar na média de 1,84, no final de junho chegaremos a 2 mil mortes.
Se o índice crescer e ficar no limite superior, em 2,04, passaremos de 2,2 mil óbitos, ao passo que, se houver redução, e a taxa for de 1,62, o número total será da ordem de 1,8 mil mortes.
"Reduzir a taxa de transmissão significa preservar mais vidas", ressalta Etereldes Gonçalves Júnior, professor do Departamento de Matemática da Ufes e um dos membros da instituição no NIEE.
Informado que, recentemente, o Ministério da Saúde sugeriu que o Espírito Santo, junto a outros dois Estados, já estaria entrando na fase de estabilização da doença, Etereldes explicou que, para quem é de fora, uma análise somente tendo como referência o Painel Covid - ferramenta do governo estadual para a divulgação de dados - pode induzir a avaliações equivocadas.
Isso porque a cada teste positivo para a doença e morte confirmada por infecção pelo coronavírus é lançado no painel no dia da coleta da amostra ou encerramento do caso, e não na data em que saiu o resultado. Assim, a atualização é diária e, dependendo do momento em que se fez a apuração dos dados, a interpretação vai ser diferente.
Um exemplo claro é o número de casos confirmados de Covid em 15 de maio. Naquele dia, havia no painel 5,8 mil registros da doença no Espírito Santo. Ao conferir os dados referentes à mesma data, na última terça-feira (9), a quantidade de resultados positivos havia saltado para 9.652.
"Quem olha de fora não pode perceber essa situação. Pelo que estava lá, no painel, a curva já estava em platô (situação de pico contínuo), mas ela continuou andando para cima e para a direita, à medida que os dados foram lançados", esclarece.
Para que a curva da Covid comece a se mover para baixo, é preciso que a taxa de transmissão da doença seja menor que um, quer dizer, quando cada paciente infectar menos de uma pessoa. Além das medidas para distanciamento social, recomendadas pela OMS, outra possibilidade de conseguir reduzir o contágio é com a chamada imunidade rebanho, alcançada quando boa parte da população é contaminada por uma doença e, dessa maneira, diminui a circulação do vírus.
No caso do coronavírus, há registros que a taxa começou a cair a partir do contágio de 25% a 30% da população. No Espírito Santo, estima Etereldes, é possível chegar a esse índice até o final de junho, se a velocidade de transmissão estiver no limite superior. Isso significa, portanto, um volume maior de mortes também.
"Mas esse modelo não considera a suscetibilidade como uma variável. Algumas pessoas são mais suscetíveis à doença que outras. É preciso um percentual menor de pessoas suscetíveis para que o contágio comece a cair nessa proporção", constata o professor.
O secretário estadual da Saúde, Nésio Fernandes, observa que há quatro tipos de imunidade que precisam ser consideradas nesse contexto. O primeiro grupo é composto por pessoas imunocompetentes, aquelas que, mesmo em contato com o vírus, não desenvolvem a doença. Há imunidade cruzada, que protege as que tiveram contato com outras cepas do coronavírus.
Também há a imunidade específica, para as que foram infectadas pelo novo coronavírus, desenvolvendo sintomas ou não, e que, por enquanto, estão imunes. Ainda não se sabe se a proteção é permanente ou temporária. E, por fim, há as pessoas mais vulneráveis à doença, e que podem evoluir para quadros graves.
"O grande problema é que não sabemos a proporção de cada uma na população", frisa Nésio Fernandes. "Então, temos que decidir pela vida das pessoas com medidas seguras e responsáveis. É preciso que a população seja protegida, e a gestão tem obrigação de fazer as melhores análises, reunir os melhores dados que impactam na saúde coletiva. As ações adotadas precisam estar subsidiadas, minimamente, em evidências científicas", acrescenta.
O secretário reforça que o distanciamento social cumpre papel importante na redução da interação e da velocidade de contágio.
Quanto às projeções, Nésio Fernandes diz que o estágio da Covid no Espírito Santo reúne três indicadores - taxa de transmissão, pressão sobre o sistema de saúde com a ocupação dos leitos de UTI, e número de óbitos -, mas o secretário ratifica que a nova fase do inquérito sorológico vai apresentar um panorama mais preciso sobre o comportamento da doença no Estado.
"No momento, o conjunto das três análises ainda é de crescimento, e de que a pandemia não está equilibrada. Mas é possível que ocorra situações de desaceleração em alguns municípios, relativa estabilização em outros, e o número de casos no Estado permaneça crescendo", afirma Nésio Fernandes, lembrando que a doença, em volume de registros, está concentrada na Grande Vitória, mas atualmente está se disseminando de maneira mais rápida pelo interior.
Para Ethel Maciel, contudo, os dados hoje não permitiriam a flexibilização de atividades como tem ocorrido no Espírito Santo e em outros Estados. A liberação, em sua avaliação, deveria ocorrer apenas quando a taxa de contágio estivesse abaixo de um, como foi adotado em outros países.
A professora destaca que as medidas de afrouxamento acabam passando uma mensagem distorcida para a população. "Como as pessoas podem ir para a academia, que é um ambiente fechado, mas não podem caminhar no calçadão da praia? Como elas vão ser convencidas a cumprir distanciamento, se os shoppings foram liberados para funcionar? A gente sabe o que vai acontecer, quantas pessoas essa doença vai atingir. Muita gente pensa que 'só 5% vão morrer', mas para uma família que é afetada, isso representa 100%. E, com a transmissão elevada, está chegando cada vez mais perto", finaliza.
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