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Estrada de pedras é coberta de cimento na Gruta da Onça e MPES abre investigação

Estrada de pedras é coberta de cimento na Gruta da Onça e MPES abre investigação

Especialistas apontam descaracterização de trilha histórica de 200 anos, construída com pedras, e que agora está sendo coberta por concreto em obra da Prefeitura de Vitória

Publicado em 5 de novembro de 2021 às 19:39

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Caminho antigo da Gruta da Onça
Calçamento em concreto começou a ser feito na trilha secular. (Edson Valpassos/Divulgação)

Caminhos percorridos por escravizados há cerca de 200 anos, com pedras instaladas naquele período, estão sendo cobertos por concreto no Parque Municipal Gruta da Onça, no Centro de Vitória. A obra, conduzida pela prefeitura, foi denunciada por interferir em características da trilha, registrada como sítio arqueológico no Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). O Ministério Público do Espírito Santo (MPES) investiga a descaracterização da área.  

Há pouco mais de quatro anos, o arqueólogo Henrique Antônio Valadares Costa fez a identificação de três sítios arqueológicos no parque - chafariz e aqueduto da Capixaba; o caminho antigo da Gruta da Onça; e o sítio Paulo Soca - e solicitou o cadastro no Iphan que, ao validar a identificação das áreas, passou a ter propriedade sobre esses espaços. Nesta semana, Henrique recorreu novamente ao instituto, mas, desta vez, para denunciar a obra.

Os sítios arqueológicos - definição para espaços alterados pela ação humana no passado (não há uma data-limite no Brasil) - são considerados patrimônios porque são um registro da história de um lugar, da sociedade.

Estrada de pedras é coberta de cimento na Gruta da Onça e MPES abre investigação

O caminho antigo da Gruta da Onça, cujo calçamento usava a técnica pé-de-moleque, com justaposição de pedras, apresentava em seu traçado e estrutura características que remetiam ao período do Brasil Colônia. O trajeto era usado para fazer a ligação da sede da fazenda do Barão de Monjardim, em Jucutuquara, até o Centro. Além disso, segundo Henrique Valadares, também contribuía para a manutenção da drenagem.

Para Edson Valpassos, professor e biólogo, a obra de restauração no parque descaracterizou não só o caminho antigo, com impacto histórico e cultural, mas também tem intervenções, como o prédio de três pavimentos no meio da mata, que não são harmônicas com a unidade de conservação ambiental.

O biólogo aponta que, em 2017, quando atuava na Secretaria Municipal de Meio Ambiente, coordenou um projeto para recuperação do caminho antigo da Gruta da Onça. Com o trajeto identificado a partir das pesquisas arqueológicas, moradores do Forte São João e do Romão foram capacitados para recuperar um trecho, utilizando as pedras do local e mantendo a técnica pé-de-moleque.

Caminho antigo da Gruta da Onça
Trajeto antigo da Gruta da Onça recuperado pelo projeto Caminhos da Capixaba . (Edson Valpassos/Divulgação)

O projeto, denominado Caminhos da Capixaba, ainda promoveu a instalação de sistema de trilhas interpretativas, adotando placas com informações ambientais, históricas e culturais. A ação foi executada a partir da disponibilidade de verba na ordem de R$ 250 mil, compensação paga por uma empresa após assinar um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC). No entanto, os recursos, afirma Edson Valpassos, não foram suficientes para recuperar todo o trajeto que, agora, tem parte sendo coberta por concreto.

Edson avalia que o problema começa na origem do projeto, elaborado na gestão passada da Prefeitura de Vitória, quando as intervenções foram definidas sem passar por uma análise técnica de historiador e arqueólogo, considerando a existência dos sítios arqueológicos.

Além do caminho antigo, que é um patrimônio histórico, o biólogo também critica o fato de as escadarias de acesso terem sido cimentadas, em vez da manutenção da estrutura em paralelepípedo que, para ele, era mais condizente por estar no meio da vegetação.

Morador da região há 35 anos, o aposentado Jair Sgulmaro observa que o projeto prevê obras de contenção de encosta, importantes para a comunidade, mas também lamenta a falta de diálogo para a execução.

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Eu gosto muito de andar pela mata, fazer trilhas, e estão destruindo aquele calçamento antigo para colocar concreto e um alambrado de inox. Estão destruindo um patrimônio

Jair Sgulmaro
Aposentado e morador da região da Gruta da Onça
Aspas de citação

O presidente da Associação de Moradores do Centro (Amacentro), Lino Feletti, ressalta que é parte da história que precisa ser preservada e, tão logo foi informado sobre a condução da obra, encaminhou a demanda para a prefeitura, que se comprometeu a realizar uma visita técnica ao local. 

APURAÇÃO

A Promotoria de Justiça Cível de Vitória informa, em nota, que instaurou procedimento para apurar possível descaracterização da trilha de pedras construída há cerca de 200 anos. "O MPES recebeu informações de que a prefeitura do município realizou obras no local e lançou concreto armado sobre o caminho, que atravessa todo o parque. A alteração ocorreu após a retirada e o amontoamento das pedras seculares, como parte de um conjunto de obras que seriam para melhorias do parque", pontua.

Para apurar, foi requisitado à prefeitura informações e providências adotadas. Após notificação, o município terá um prazo de 15 dias para se manifestar perante o MPES.

Já o Iphan confirma o recebimento da denúncia, mas a assessoria do órgão disse que a manifestação só vai ocorrer após a vistoria no local. Uma equipe técnica esteve na Gruta da Onça nesta sexta-feira (5), segundo o arqueólogo Henrique Valadares, mas o posicionamento do instituto ainda não foi apresentado. O texto será atualizado assim que houver uma resposta sobre o caso. 

O QUE DIZ A PREFEITURA

A assessoria da Secretaria Municipal de Meio Ambiente (Semmam) diz, em nota, que a Prefeitura de Vitória recebeu a denúncia durante o feriado de Finados e iniciou imediatamente a verificação da documentação envolvida na obra: relatórios técnicos, estudos e o processo de licenciamento, considerando que foi planejada, licenciada e contratada na gestão anterior. 

Ainda em nota, a assessoria acrescenta que entrou em contato espontaneamente com o Iphan e programou uma visita técnica à obra. 

Técnicos e gestores das secretarias municipais de Meio Ambiente e de Obras foram ao local na manhã desta sexta-feira (5) realizar nova vistoria e averiguar o cumprimento das especificações técnicas.

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