Todas as semanas, no segundo andar do Hospital da Restauração (HR), na região central do Recife, o médico Marcos Barretto, 70 anos, parece ouvir a mesma história.
"Doutor, a panela de pressão explodiu."
O cirurgião, que comanda há décadas o centro de tratamento de queimados que é referência no país, contabiliza, em média, pelo menos uma pessoa por semana que aparece ali após se acidentar com o utensílio essencial para o feijão de cada dia do brasileiro.
Barretto lembra de exemplos marcantes: quando comida fervente ficou grudada no rosto; quando a tampa causou traumatismo na face; ou quando a paciente perdeu parte da visão.
São, em geral, mulheres, pobres, donas de casa ou empregadas domésticas.
Também aparecem adolescentes de 12, 13 anos que estão começando a ajudar na cozinha de casa ou que resolveram mexer onde não deviam.
Mesmo encarando tantos exemplos trágicos semanalmente no trabalho, Barretto nunca pensou, ele próprio, em deixar de usar uma panela de pressão.
"Lá em casa a gente usa sem nenhuma dificuldade. Pra fazer língua de boi, alguma carne, feijão", diz. "O uso adequado não traz nenhum risco."
A opinião de que a panela de pressão não deve deixar de ser usada pela população é compartilhada por quem entende – seja de comida ou de física.
"A gente não tem que ter medo desses elementos mecânicos, e sim respeito por eles. Com a manutenção em dia, o risco de acidente é praticamente zero", defende o engenheiro e mestre em Ciências de Materiais Leandro Possamai, professor do Instituto Federal de Goiás (IFG).
"Não é pra ter medo, porque é seguro usar. Tem que lembrar que a cozinha essencialmente é um ambiente de risco, não dá pra ligar o fogo e ir mexer no celular", completa Zenir Dalla Costa, coordenadora no curso de Tecnologia em Gastronomia no Senac-SP (Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial).
Apesar disso, acidentes seguem ocorrendo, como mostram dezenas de vídeos compartilhados nas redes sociais que captam momentos de explosões – e que acabam espalhando um medo em parte da população que se diz avessa ao objeto.
A BBC News Brasil consultou os Corpos de Bombeiros dos três Estados mais populosos do Brasil.
Considerando apenas o Rio de Janeiro e São Paulo, foram 104 chamados para atender acidentes envolvendo panela de pressão em 2022. Em 2023, até meados de agosto, foram 59.
Em Minas Gerais, os Bombeiros contabilizam apenas "acidentes causados por superaquecimento de panelas", podendo ser de pressão ou não. Foram 154 ocorrências em 2023 até 15 agosto - e 198 em todo o ano de 2022.
Esses números dos Bombeiros refletem situações em que os socorristas são acionados e que envolvem incêndios e resgate de vítimas.
Eles não incluem, por exemplo, pessoas que foram socorridas por familiares ou que não precisaram de atendimento.
Segundo o Ministério da Saúde, como não há um código específico para acidentes com panela de pressão, não é possível filtrar esses dados em atendimentos em unidades de saúde no país.
A razão para o relevante número de acidentes, segundo os especialistas, é a falta de informação.
Lucileide Maria da Silva, 52 anos, cozinhava o almoço em sua casa no bairro do Ibura, na periferia do Recife, quando tudo embaçou.
Ela mexia no arroz numa das bocas do fogão – em outra, a panela de pressão cozinhava o feijão. Foi quando explodiu. Os grãos voaram para as paredes e para o rosto da dona de casa.
"Só fiz fechar os olhos e sentir o vapor quente no rosto. Gritei pro meu filho: 'me ajuda aqui'", lembra.
O teto da casa chegou a ser danificado, e os óculos da dona de casa quebraram.
Socorrida pela família para uma unidade de saúde, Lucileide não se recorda de muita dor, só que estava com o rosto ainda sujo com o feijão quente.
Mas o resultado veio: queimaduras de segundo grau em toda a face, o que a levou ficar internada por 9 dias no Hospital da Restauração. À base de anestesias, passava por procedimentos de limpeza e tomava medicação.
Como a maioria dos casos, o que causou a explosão foi uma falta de entedimento de como funciona a panela de pressão.
A dona de casa lembra que, semanas antes do acidente, o marido adulterou a válvula de segurança da panela para impedir que ela se abrisse - travando-a de uma forma que o vapor não pudesse sair - "para parar de assustar dentro de casa".
"Por incrível que pareça, a gente não tinha essa informação de que a válvula precisa abrir pra sair o vapor e ela não explodir. E digo mais: aqui na periferia eu te garanto que pouca gente sabe disso."
A válvula de segurança presente nas tampas da panela são aquelas que só são "ativadas" quando a válvula principal, que gira e regula a pressão, não está funcionando. Quando isso acontece, essa válvula reserva se abre bruscamente para que a pressão seja eliminada.
Se o vapor não sai, a pressão segue se elevando internamente, até chegar ao ponto em que a panela não aguenta mais e se rompe.
"É como se fosse um grande pneu de carro. Se você continuar colocando um ar lá dentro, colocar ar, colocar ar, vai chegar a uma determinada pressão que ele vai explodir, porque ali ele não tem nenhuma válvula de escape com relação a esse aumento demasiadamente grande da pressão interna", explica Possamai, professor do IFG.
Como resultado da explosão da panela na casa de Lucileide, o líquido que causou as graves queimaduras era ainda mais quente do que a água fervente que usamos para fazer café ou macarrão, por exemplo.
Possamai explica que isso acontece porque, com a água esquentando dentro de um ambiente confinado (a panela vedada), a pressão interna se eleva.
Com a pressão interna cada vez maior, também é elevada a temperatura necessária para ebulição da água. Ou seja, se na pressão normal, no nível do mar, a água começa a entrar em ebulição a 100º C, dentro da panela de pressão ela precisa atingir uma temperatura maior para isso acontecer.
É por conta dessa água mais quente que o alimento cozinha mais rápido.
"A falta de cuidado causa mais queimadura que o fogo", diz o médico Marco Barretto, que cuida de queimados no Recife.
Quem tem informação, além de não se acidentar, não tem medo, reforça Zenir Dalla Costa, do curso de gastronomia do Senac-SP.
"Alguns alunos chegam aqui com esse medo, mas aí a gente faz questão de ensinar que é seguro se for feita a manutenção e a válvula for mantida limpa", diz.
Uma das dicas essenciais para que a panela não exploda é estar sempre atento à válvula. Dalla Costa explica que se pode limpar com agulhas de desentupir fogão.
No caso da borracha que veda a tampa, é importante trocá-la caso esteja gasta ou folgada.
No Instituto Federal de Goiás, onde dá aulas de física, o professor Leandro Possamai fez um projeto para usar a panela de pressão como exemplo prático dentro de sala de aula.
A ideia é mostrar que objetos do cotidiano não "funcionam apenas porque funcionam".
"Às vezes esses equipamentos de uso tão corriqueiro são tão negligenciados que a gente não vê a física envolvida. E os alunos têm uma receptividade enorme quando ensinamos com esse exemplo."
O professor explica aos estudantes do ensino médio, por exemplo, que, quando a panela pegar pressão, podemos diminuir o fogo, pois a água já atingiu a temperatura máxima dentro da panela – e que isso reduz o tempo de cozimento e o gasto com gás.
E não é só para a economia (de tempo e dinheiro) que a panela de pressão é importante – ela também é fundamental para a qualidade de alguns alimentos essenciais ao brasileiro.
O feijão, por exemplo, tem mais qualidade se cozinhado na pressão, diz Dalla Costa, do Senac-SP. "Se cozinha na panela normal, além do enorme gasto de gás, o feijão vai ficar mais escuro, e não vai ter a uniformidade de cozinhar tudo da mesma forma."
Carne de panela e mandioca/macaxeira/aipim são outros favoritos que vão bem melhor na pressão.
O cuidado precisa ocorrer em alimentos que soltam "casquinha", como grão de bico, e alguns tipos de favas. Essa pele, se a panela estiver muito cheia, pode acabar entupindo a válvula.
"Geralmente, quando está desse jeito, já vaza água pela válvula", diz Dalla Costa. "A panela sempre vai dar sinais de que algo não está funcionando."
"É o que sempre digo: não pode colocar no fogo, abandonar a panela lá e ir mexer no celular no sofá. Não é assim que a cozinha funciona."
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