Quando estabeleceu o isolamento compulsório de pessoas diagnosticadas com hanseníase, a lei federal em 1949 também determinou a separação de pacientes dos seus filhos. A política de segregação, que no Espírito Santo durou entre 1935 e 1972, deixou muitas marcas nas famílias hansenianas. Além da perda de vínculos familiares, alguns passaram por sofrimentos físicos e mentais. Agora, mais de sete décadas depois, o governo brasileiro reconhece, por meio da Lei 14.736/2023, o direito desses filhos de receberem uma pensão especial no valor de um salário mínimo (R$ 1.320) como forma de reparação histórica.
Publicada no Diário Oficial na última segunda-feira (27), a lei autoriza o pagamento de uma pensão vitalícia e intransferível para os filhos de pessoas com hanseníase internadas compulsoriamente ou submetidas ao isolamento até 1986. O direito à pensão dos hansenianos foi reconhecido em 2007, mas, anteriormente, a lei não o estendia a seus filhos.
De acordo com Heraldo Pereira, diretor capixaba do Movimento de Reintegração dos Acometidos pela Hanseníase (Morhan) e presidente do Educandário Elzira Bley, no Espírito Santo, há cerca de 400 pessoas que podem requerer o benefício, com idades que variam entre 48 anos, o mais novo, e, 90 anos, o mais velho.
Mas a publicação no Diário Oficial não significa que os herdeiros vão começar a receber imediatamente. Primeiramente, é necessário que o governo federal edite um decreto regulamentando todo o processo. Com o Congresso entrando em recesso, isso deve ocorrer a partir do dia 15 de janeiro. Além disso, a Lei 14.736/2023 determina que o beneficiário deverá requerer o recebimento do benefício.
Pereira explica que, após o decreto, um grupo de trabalho solicitará ao Morhan Nacional as informações acerca de quem são os possíveis beneficiários. No Morhan, cada Estado tem uma comissão de filhos que enviará a lista de requerentes do benefício. Em seguida, o grupo de trabalho vai julgar pedido a pedido, assim como está sendo feito hoje com a solicitação de pensão dos hansenianos internados compulsoriamente em colônias.
“O Morhan vai encaminhar para as comissões de filhos quais documentos que devem ser encaminhados para Brasília, que são a ficha de internação dos pais dentro do hospital — colônia, declaração de que foi internado no Educandário Alzira Bley — e os documentos comuns, como identidade e CPF”, adianta Pereira.
Após todo esse procedimento, ele explica que os pagamentos serão realizados com base em dois critérios: preferencial e por idade. Assim, pessoas com alguma doença/necessidade especial serão as primeiros a receber. Em seguida, os mais velhos até chegar aos mais novos.
Em publicação nas redes sociais, o Morhan nacional alerta para que todos os filhos separados dos pais com direito ao benefício tenham cuidado com golpes e fake news (desinformação). Tem chegado à ciência do órgão diversas tentativas de fraudes e notícias falsas sobre a regulamentação do benefício.
Pereira é uma das centenas de crianças capixabas que foram segregadas dos pais hansenianos. Na reportagem especial “Colônia dos Excluídos”, A Gazeta mostrou a história da Colônia de Itanhenga, em Cariacica, onde o governo construiu uma minicidade para isolar pessoas com hanseníase. Na época, a doença não tinha cura, e as autoridades tinham medo de que ela se espalhasse.
Além de isolados, os hansenianos eram segregados dos filhos. Caso os bebês não apresentassem sinais da doença, alguns eram enviados para parentes, já outros para o educandário Alzira Bley, uma espécie de orfanato, mantido por doações. Nele só viam os pais poucas vezes por ano, através de uma tela.
“É uma reparação de uma injustiça muito importante que o presidente Lula está fazendo. Mas é preciso agora o Estado regulamentar. Essas pessoas nasciam no hospital de hanseníase e, na mesma hora que era tiradas do ventre da mãe, eram entregues no educandário”, explica o Doutor Hércules Silveira, ex-deputado e ex-diretor do Hospital Fonte Grande, onde ficava localizada a colônia.
Junto com Pereira e outros afetados, ele reivindica o desengavetamento do seu projeto de lei 258/2022, que, além da pensão federal, exige que uma indenização estadual seja dada para os filhos separados dos pais hansenianos. Quando Doutor Hércules perdeu o mandato em 2022, o projeto foi arquivado. São Paulo, Goiânia, Rio de Janeiro e Minas Gerais já aprovaram ou têm projetos de lei similares em processo adiantado.
“Eu acho triste. Éramos muito maltratados”, recorda Helena Lucia Galare. Aos 66 anos, ela é uma das filhas de hansenianos que terá direito ao benefício de um salário mínimo. Separada dos pais e enviada ao Alzira Bley, Helena conta que, desde os 5 anos, cumpria funções no educandário: varrer, lavar louça e cuidar dos bebês. Já aos 8 anos, frequentava lavanderia, limpeza e cozinha. Aos 13, fazia a limpeza toda do educandário. Por conta de tantos serviços, só conseguiu estudar até a terceira série.
“Eu não terminei meu estudo. Eu tinha que fazer muito serviço. Se a gente não desse conta de terminar o serviço, não podia ir para a escola”, conta e completa: “A gente ia fazer o quê? Não tinha ninguém por nós. Nós mesmos tínhamos que nos virar.”
Daquela época, também recorda da fome. Conta que vivia com dor de cabeça devido a não ter nada para comer no educandário. Embora o governo financiasse o hospital–colônia, o Alzira Bley sobrevivia a base de doações, que raramente eram suficientes para garantir todas as necessidades dos internos.
Mas, apesar do sofrimento, Helena não esquece das coisas boas que aprendeu, como artesanato e corte e costura. Ela saiu aos 23 anos e, a partir daí, viveu em casas de família, trabalhando como empregada doméstica. Atualmente, mora no bairro Padre Matias (antigamente chamado Pica-Pau). Este e o o bairro Cajueiro foram criados a partir de doações de terras de áreas limítrofes à colônia feitas para ajudar os ex-internos a se integrarem à sociedade. Nessas terras, podiam construir suas casas e cultivar.
Sobre o benefício, diz que, se vier, será ótimo, mas conta que não compensará todas as consequências de ter sido separada dos pais e mandada para o educandário.
Segundo o Ministério da Saúde, a nova legislação é uma reparação histórica a todas as crianças que foram separadas de suas famílias e das consequências que vieram dessa política nacional.
“Nenhum dinheiro do mundo é capaz de compensar ou apagar as marcas que a segregação provocou na alma e no coração das pessoas portadoras de hanseníase e suas famílias. Mas estender aos filhos o direito à pensão especial é dar mais um passo importante para reparação de uma dívida enorme que o Brasil tem com aqueles que, durante anos, foram privados dos cuidados e carinho dos pais”, destacou o presidente Lula, durante a cerimônia de sanção da lei, que ocorreu no dia 24 de novembro.
A lei ainda traz outras três medidas: uma delas afirma que o valor do benefício para os pais, que hoje é de R$ 750, será aumentado para um salário mínimo. A outra diz que a pensão aos filhos não será transmitida aos herdeiros. E a última alteração é estender o benefício para pessoas submetidas a isolamento domiciliar ou em seringais — antes, a lei só tratava de internos em hospitais–colônias.
Em janeiro, A Gazeta fez o especial “A Colônia dos Excluídos”. Uma série de reportagens em cinco capítulos sobre a Colônia de Itanhenga, em Cariacica, construída em 1935, para isolar pessoas diagnosticadas com hanseníase.
No primeiro capítulo, “Sociedade entre muros”, a história da criação da colônia é relatada. Ela começou em 1935, após Pedro Fontes, responsável pela diretoria de Higiene do Espírito Santo, fazer um mapeamento e encontrar cerca de 700 pessoas com hanseníase no Estado. Construída com a estrutura de uma minicidade, a obra foi inaugurada em 1937. Mas os motivos da criação iam muito além de apenas proteger as pessoas diagnosticadas.
O segundo capítulo da série é chamado “Aprisionados pela doença”. Traz o depoimento, em vídeo, de quatro pacientes internados compulsoriamente na Colônia de Itanhenga. Cada história mostra um pouco do que os quase 1,6 mil pacientes sofreram, como José Fernandes Pereira, 70 anos, mais conhecido como Zé Pretinho, que, por ter sido diagnosticado com hanseníase, foi privado de estudar e não aprendeu a ler. Ou Analdiz Scalzer, 68 anos, que ainda mora nos pavilhões da colônia.
Ebis Grossmann, 74 anos, via as filhas duas vezes por ano: no Dia das Mães e no Natal. Era quando as crianças eram levadas até o portão do hospital. Valtair José, 70, chegou à colônia com 21 anos acreditando que, em pouco tempo, sairia. Hoje mora na casa onde viviam os diretores do hospital.
Em seguida, na reportagem “Orfãos de pais vivos”, a história do educandário e da segregação de centenas de crianças é detalhada.
Já em “A vida após a colônia”, a reportagem mostra como as consequências do estigma gerado pela hanseníase levaram alguns ex-internos a nunca deixar os pavilhões do hospital. No último capítulo, saiba tudo sobre a hanseníase: história, casos no Espírito Santo, tratamento, preconceito e vacina.
*Carla Nigro é aluna da 26ª turma do Curso de Residência em Jornalismo da Rede Gazeta. Esta matéria foi produzida sob a supervisão de Mikaella Campos
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