A negativa de reserva de vaga em uma casa noturna de Vitória, ocorrida em junho de 2018, deixou marcas em uma estudante negra, nascida em São Mateus, no Norte do Estado, que prefere não ser identificada. De acordo com ela, o que mais incomoda hoje, passados mais de dois anos do episódio de racismo, é o medo da impunidade. "Depois de tudo que eu passei e senti, ainda pode ser que não seja feita justiça e que o caso seja esquecido. Por mim e quem me acompanhou com certeza não será", lamentou.
No último dia 05, o advogado dela, José Roberto de Andrade, entrou com um recurso no Supremo Tribunal Federal (STF) para reverter a decisão em segunda instância, que não considerou que tenha ocorrido racismo no caso. À época do incidente, um promoter da boate localizada no bairro Santa Lúcia foi indiciado pelo crime.
Para a capixaba, a sensação latente é de tristeza. "Sinto que quando se podia avançar em termos jurídicos, isso não acontece. O sentimento que eu tive em 2018, de tristeza pelo caso, volta a se manifestar novamente com este recurso sendo aceito pelo tribunal aqui do Espírito Santo. Não tinha vivenciado nada parecido. Sou negra, desde que nasci passo por situações cotidianas que nós negros em um país racista infelizmente passamos, mas nada parecido com isso", desabafou.
De acordo com o advogado, a ação por danos morais, que tem andamento na Justiça, chegou ao STF após a 2ª Turma Recursal de Vitória ter tido entendimento diferente do juiz em primeira instância. "A sentença do juiz julgou procedente os pedidos da autora, ou seja, a boate Let's foi condenada a pagar danos morais em razão dos fatos, no valor de R$ 10 mil. A boate então entrou com um recurso e ele foi julgado procedente, tendo sido a sentença reformada integralmente, não reconhecendo o direito da autora a nenhum tipo de indenização, porque entendeu que os fatos configuravam mera coincidência", explicou.
Para José Roberto de Andrade, o entendimento dos magistrados em segundo grau de análise foi bastante equivocado. "O delegado entendeu de forma correta os fatos, no sentido de indiciar o gerente da boate, bem como o juiz em primeiro grau também, por entender que houve racismo, condenando a boate. Mas o colegiado de juízes entendeu que havia uma mera coincidência. Mas seria o cúmulo da coincidência, foram quatro pessoas fazendo ligações para solicitar um aniversário para a mesma data e horário, duas brancas e duas negras. Só as brancas conseguiriam agendar. Nós entendemos que a decisão afronta as provas e a legislação e por esse motivo ingressamos com o recurso extraordinário no STF", afirmou.
O jurista resumiu o caso, explicando que a ação de indenização por danos morais se deu em razão de a jovem ter sido vítima de discriminação racial na boate. "A autora tentou fazer uma reserva de vaga para o dia 28 de junho de 2018, quando o estabelecimento afirmou que não havia vaga. Esse procedimento era feito por intermédio de whatsapp, em que fica disponível a fotografia do solicitante. Como ela ficou desconfiada da recusa, pediu, em momento posterior, que uma colega branca fizesse reserva para a mesma data. São colegas da Ufes e a colega branca conseguiu, sem nenhum problema", disse.
Não satisfeita, a vítima pediu para uma segunda colega tentar fazer a reserva. "Dessa vez foi uma colega negra, que não conseguiu disponibilidade para a mesma data. Pediu para uma terceira pessoa, branca, que conseguiu a reserva. São quatro mulheres, duas negras que não conseguiram e duas brancas que conseguiram sem nenhum problema. Estes são os fatos que embasaram a instauração de inquérito policial, pelo qual o então gerente da boate respondeu por racismo. Esse mesmo gerente foi indiciado e responde a um processo criminal, tendo sido inclusive desligado da boate", descreveu Andrade.
A estudante negra segue aguardando uma resposta da Justiça. "A medida justa é que eles sejam punidos pelo crime que cometeram, que não saiam impunes para que isso não aconteça com outros negros e negras", finalizou.
A estudante capixaba - que preferiu não ser identificada - entrou em contato pelo Whatsapp no dia 13 de junho de 2018 com um gerente da boate Let's, em Vitória, que disse não ter mesa disponível para ela no dia 28 de junho, data do aniversário da vítima.
A estudante desconfiou da situação e pediu que uma amiga de cor branca enviasse uma mensagem para a casa noturna e pedisse uma reserva para o mesmo dia. A resposta foi de que havia vaga. Ainda desconfiada, ela ainda pediu que uma outra amiga, que é negra, reservasse uma vaga e a resposta mais uma vez foi que de não havia disponibilidade.
Para confirmar a situação, a estudante pediu ajuda a uma terceira amiga, que é branca. O contato foi feito com a casa noturna e a resposta, diferente da que foi dada para a amiga anterior, foi positiva. Havia disponibilidade.
A casa noturna havia sido condenada em primeira instância da Justiça a pagar uma indenização por danos morais em R$ 10 mil, mas recorreu e conseguiu reverter a decisão na Segunda Turma do Juizado Especial do Espírito Santo, que afirmou que a diferença de tratamento foi uma coincidência. Em defesa, o estabelecimento teria alegado não ser racista, "inclusive por empregar pessoas negras".
A reportagem tentou contato com o estabelecimento pelos números disponíveis, mas as ligações não foram atendidas. Reitera que os canais estão abertos caso queira se posicionar sobre o assunto.
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