O contrato que garantia uma rede de pesquisa sobre o Rio Doce e municípios afetados por sua bacia, envolvendo 27 instituições, dentre elas universidades públicas federais, foi cancelado, unilateralmente, pela Fundação Renova. A decisão ocorre a poucas semanas de completar cinco anos do maior desastre ambiental do país. A decisão surpreendeu a Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), que informou que todo o trabalho que vem sendo desenvolvido pelos pesquisadores será paralisado sem ter sido concluído.
Segundo a Ufes, a suspensão do contrato afeta várias pesquisas em andamento, estruturas físicas em fase de implementação (como laboratórios para análises do material coletado) e a construção de uma base de dados que viabilizará respostas quanto ao nível de contaminação sofrida pelo rompimento da barragem.
Ainda segundo a universidade, a interrupção do programa sem a criação de alternativas poderá trazer consequências negativas ao deixar as autoridades públicas de proteção ao meio ambiente e promoção social desprovidas de dados essenciais para a reparação dos danos causados e para construir estratégias que reduzam os prejuízos à natureza e à população.
"Esses estudos são essenciais para a tomada de decisões técnicas dos poderes, especialmente Judiciário, Ministério Público e órgãos ambientais, que os têm como base de referência na construção de um cenário claro e transparente de como o rompimento da barragem de Fundão pode ter interferido na biodiversidade da sua área de influência e suas consequências", explicou a Ufes, por nota.
A Defensoria Pública do Espírito Santo (DPES) informa que já está levantando informações sobre a suspensão do contrato. Já solicitamos informações para a Fundação Renova e para a Fundação Espírito-santense de Tecnologia (Fest). Também estamos em contato com o Ministério Público Federal (MPF) e com a Câmara Técnica de Biodiversidade do Comitê Interfederativo (CTBio), relatou o defensor público estadual Rafael Mello Portella Campos.
Ele explicou que o MPF já retomou a ação civil pública de R$ 155 bilhões contra as empresas. O que significa que as metas do acordo não foram cumpridas e temos que buscar judicialmente as reparações para os atingidos, destacou.
Portella considera grave a decisão da Fundação Renova. A forma como foi feita, sem regra de transição para continuidade do estudo, é algo grave a ser combatido e revisto, destaca.
A rescisão, avalia ele, faz parte de um processo maior de desconstrução em relação ao Rio Doce. Outro exemplo ocorreu durante a pandemia, com a postura das empresas e da Renova de judicializar todas as questões e buscar reduzir direitos e reconhecimentos durante o contexto da pandemia, cortando 15 mil auxílios financeiros, decisão revista pelo Judiciário, lembra.
Destaca ainda outro fato, que foi a suspensão do cadastramento dos atingidos pelo rompimento da barragem. Isto apesar do péssimo trabalho que vinha sendo feito de cadastramento. E sem contar os obstáculos à implementação das assessorias técnicas que ajudariam as comunidades, relata.
Outro ponto listado por Portela é a desconstrução do litoral capixaba como área atingida pelos rejeitos da barragem. Estudos apontam que os impactos se expandiram pelo litoral capixaba, o que é diametralmente oposto ao que aponta a Renova, que nega o fato com uma postura restritiva de que apenas a foz do Rio Doce foi impactada e que os rejeitos não se expandiram. Os estudos mostram que há impactos e que eles precisam ser melhor avaliados e que precisa de continuidade no monitoramento, relata.
A rescisão atingiu o Acordo de Cooperação Técnico-Científica e Financeira firmado com a Fundação Espírito-Santense de Tecnologia (Fest), vinculada à Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes). Ele garantia a execução do Programa de Monitoramento da Biodiversidade Aquática (PMBA), que foi estabelecido no Termo de Transação e Ajustamento de Conduta (TTAC).
O acordo foi firmado pela Samarco, a Vale e a BHP Billiton com a União, os estados do Espírito Santo e Minas Gerais, e órgãos ambientais federais e estaduais. Quem responde por ele é a Fundação Renova, instituição responsável pelas ações de reparação e recuperação das áreas afetadas pelos rejeitos de mineração, e mantida pelas três empresas.
Em ofício da Fest a que a reportagem teve acesso, é informado aos colaboradores que a decisão da Renova afeta o Programa de Monitoramento da Biodiversidade Aquática da Área Ambiental I, porção capixaba do rio Doce e região marinha e costeira adjacente. Informamos que, nesta quarta-feira (30/09), a Fundação Renova comunicou a Fest e a Ufes, em reunião agendada e por meio de ofício, que não irá mais executar o PMBA com a FEST-RRDM, rescindido, de forma unilateral, o Acordo de Cooperação em 30 dias, corridos a partir desta data, diz o texto do documento.
Foi dado à Fest um prazo de 30 dias para que ponha em prática um cronograma de desmobilização, finalizando os contratos de colaboradores e de serviços contratados junto a terceiros, realizando a prestação de contas e entrega de relatórios, informa o ofício
A Renova lançou mão, segundo fontes ouvidas pela reportagem, de uma cláusula do contrato, onde consta a possibilidade de cancelamento unilateral do contrato por causa imotivada. Com isto, não deu justificativas para a decisão.
A previsão inicial, estabelecida no Termo de Referência nº 04/2016 (TR4), era que o Programa (PMBA) teria a duração de até cinco anos, o que ocorreria no final de 2021. Um total de 566 pessoas, entre professores e alunos de graduação, doutorandos e pós-graduandos, atuavam nas dezenas de projetos que estavam sendo desenvolvidos em 63 municípios no Espírito Santo e outros 7 em Minas Gerais.
Um total de 27 instituições, incluindo as universidades federais de Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Distrito Federal, dentre outras do Nordeste e do Amazonas, além da Ufes, executavam os projetos.
Em 2020, a Fundação Renova deixou de fazer o repasse semestral para a Fest, que deveria ter sido feito em fevereiro e outro em junho, cada um no valor de quase R$ 30 milhões.
Segundo fontes ouvidas pela reportagem, era o maior projeto científico do Brasil e do mundo, identificando as demandas ambientais e sociais das áreas impactadas pelo desastre ocasionado pelo rompimento da barragem.
Segundo o defensor público estadual, a desmobilização das pesquisas, causada pela rescisão do acordo, traz sérios danos para as pesquisas e estudos que estão sendo desenvolvidos.
Vai afetar a produção de estudos e pesquisas em inúmeros ramos do conhecimento, que trabalham com a transversalidade destes estudos, com a coordenação e junção para compreender os reais impactos no Espírito Santo. Vai acabar com o repositório científico produzido de forma autônoma e independe das empresas. E com o acesso à informação da população aos dados científicos servem de base para as medidas de reparação que esta se desenvolvendo no sistema do Comitê Interfederativo (CIF), disse.
Coloca em risco ainda o destino das mais de cinco centenas de colaboradores, e da infraestrutura para desenvolver os trabalhos. Afetando ainda as redes hoteleiras, setores de locação de veículos, contratação de embarcações, as ONGs que trabalhavam em conjunto. É uma estrutura única que será desmobilizada, relata.
Por nota, a Ufes informou que o Programa de Monitoramento, que foi instituído na época do desastre ambiental por recomendação dos órgãos de proteção ao meio ambiente e do Ministério Público, está sendo executado pela Rede Rio Doce Mar (RRDM), constituída pela Ufes em articulação com outras universidades e entidades científicas.
O conhecimento produzido seria traduzido em informação para a tomada de decisões por parte desses agentes protetores da natureza e das populações ribeirinhas, bem como para embasar o julgamento do Juízo responsável pelo processo instaurado contra as empresas signatárias do TTAC, instituidoras da Renova, diz o texto.
A Administração Central da Ufes manifestou preocupação quanto ao futuro dessas iniciativas e se coloca à disposição para construir as melhores soluções para a população afetada e para toda a sociedade. A Universidade entende que os conhecimentos já acumulados e em desenvolvimento são de importância central para promover a recuperação ambiental, econômica e social da região afetada pelo desastre ambiental, com repercussão em perímetro mais amplo. Por isso, é importante assegurar e articular meios para a continuidade dos projetos, sempre considerando a excelência do trabalho desenvolvido e a necessidade de parcerias fortes para que sejam executados em sua plenitude.
O desastre aconteceu no dia 5 de novembro de 2015, quando houve o rompimento da barragem de Fundão, que armazenava rejeitos de mineração, na cidade mineira de Mariana. A lama que desceu o rio, passando por dois estados até chegar ao litoral capixaba, causou severos danos à vida no rio, matou 19 pessoas e destruiu cidades ribeirinhas.
Por nota, a Fundação Renova informou que ampliará o acesso de grupos de pesquisa ao monitoramento da biodiversidade aquática nas áreas costeiras, marinha, estuarina e dulcícola do Espírito Santo, por meio da abertura de um processo seletivo nacional. Os projetos destinam-se a uma nova etapa do monitoramento, com objetivo de aprofundar os estudos relacionados à identificação e caracterização dos impactos ao meio ambiente do rompimento da barragem de Fundão (MG) e suas respectivas medidas de reparação.
A previsão é que a chamada pública para a nova fase do Programa de Monitoramento da Biodiversidade Aquática (PBMA), bem como sua implementação, aconteça ainda em 2020. A seleção de pesquisadores e o aprofundamento dos estudos se dará em alinhamento com a revisão do Termo de Referência nº 04/2016 (TR4), conduzida pela governança externa da Fundação Renova.
Disse ainda que as atividades do PMBA estão paralisadas há mais de 180 dias, devido à pandemia do novo coronavírus, e que em função disto irá descontinuar, a partir de outubro de 2020, o Acordo de Cooperação Técnico-Científica e Financeira, iniciado em setembro de 2018, com a Fundação Espírito-Santense de Tecnologia (Fest), por meio do consórcio Rede Rio Doce Mar (RRDM), dando início a uma nova fase do Programa de Monitoramento da Biodiversidade Aquática na porção capixaba.
Para o monitoramento que investiga de micro-organismos a baleias, além da qualidade da água, sedimentos e ecossistemas como manguezais e restingas, a Fundação Renova investiu, até aqui, cerca de R$ 200 milhões. Também foram realizados investimentos em equipamentos e infraestrutura dos laboratórios das entidades envolvidas, os quais permanecerão como patrimônio dessas instituições de pesquisa e ensino, e em bolsas acadêmicas para alunos e pesquisadores.
Notou alguma informação incorreta no conteúdo de A Gazeta? Nos ajude a corrigir o mais rapido possível! Clique no botão ao lado e envie sua mensagem
Envie sua sugestão, comentário ou crítica diretamente aos editores de A Gazeta