O processo judicial e as atitudes de seus respectivos atores, na ação pública em que a influenciadora digital Mariana Ferrer acusou de estupro o empresário André Camargo Aranha, marcaram as discussões nas redes sociais e provocaram reações. Para profissionais do Direito, o machismo está presente em decisões sobre crimes de estupro.
O registro criminal aconteceu em setembro de 2018, durante uma festa em Florianópolis, Santa Catarina, Estado do Sul do Brasil. Publicado inicialmente pelo site The Intercept Brasil, a gravação da audiência de instrução do processo e também o conteúdo de trechos da sentença - baseada no relatório do Ministério Público em que o promotor pede a absolvição do réu - revela o que, para as especialistas ouvidas por A Gazeta, caracterizam o machismo no sistema judiciário.
"Em todos os casos que envolvem estupro, certamente a vítima ainda tem que enfrentar o machismo que, em geral, está presente nas instituições estatais", descreve Caroline Vitorino, professora de Direito Penal e Processual Penal da Faculdade Multivix.
Nas alegações finais do Ministério Público, apresentadas em agosto após a conclusão do inquérito e também após troca de promotor, não há menção à expressão "estupro culposo". O termo foi usado pelo site The Intercept para explicar o registro do promotor que afirma não ter constatado dolo (intenção) do empresário em cometer o crime. O jornal fez um esclarecimento sobre a situação após a repercussão.
No relatório, o Ministério Público de Santa Catarina considerou 'duvidosa' a situação de vulnerabilidade da influenciadora no dia dos fatos. Além disso, entendeu que faltavam provas para confirmar que o empresário tinha 'consciência' de que a jovem não poderia oferecer resistência a ele.
A vítima realizou exame de corpo de delito que comprovou que houve rompimento de hímen e que havia presença de sêmen no corpo. Porém, nem o laudo ou o depoimento da vítima foram suficientes para que houvesse o convencimento do promotor Thiago Carriço de Oliveira, responsável pelo caso.
Para configuração do delito de estupro de vulnerável, é necessário que a vítima tenha menos de 14 anos ou que esteja em situação de vulnerabilidade, não podendo oferecer resistência. Por isso, para o MP catarinense, teria havido um 'erro do tipo' penal, uma vez que não teria sido comprovada a incapacidade de Mariana, uma vez que ela afirmou que teria sido dopada. Em outros crimes, esse "erro de tipo" poderia configurar a modalidade culposa (sem intenção), que é inexistente em casos de estupro.
A sentença do juiz baseou-se neste relatório final e inocentou Aranha.
Para a coordenadora do Mestrado em Direito e Garantias Fundamentais da Faculdade de Direito de Vitória (FDV), Elda Bussinger, o processo em questão é uma sequência de erros que podem ser divididos em dois aspectos. O primeiro deles é o processual porque, para ela, com base no que teve acesso, não houve consentimento de Mariana para a relação, independentemente de embriaguez ou qualquer outra substância que causasse a vulnerabilidade.
"Estando ou não consciente, não há justificativa alguma para ter a dignidade sexual violada. Houve a relação, já que um laudo aponta sêmen e lesão. As provas existiam nos autos e, nesse sentido, a decisão fere qualquer compreensão jurídica. Tanto que o primeiro membro do Ministério Público pediu a prisão do acusado. Já no final dos procedimentos, a promotoria afirma que não houve dolo ao estupro. Porém, todo estupro tem dolo e tem intenção. O que vimos ali foi uma construção típica de um processo machista tentando construir teses jurídicas novas para dar outra visão ao procedimento", afirma.
O outro aspecto levantado pela coordenadora é o que trata sobre a audiência. "Fica evidente a cultura do estupro a que nos estamos nos referindo, além do Direito servindo às elites, as instituições de Justiça não se prestaram à efetivação da Justiça. Nós temos um advogado que extrapolou todos os limites e violou os princípios constitucionais", pontua.
Na gravação da audiência, o advogado Cláudio Gastão Filho, que representa o empresário André Camargo Aranha, chega a dizer que Mari Ferrer tem como 'ganha pão a desgraça dos outros', expõe fotos pessoais e as julga como 'em posição ginecológica', além de dizer que as lágrimas da vítima eram de crocodilo. O juiz Rudson Marcos, da 3ª Vara Criminal de Florianópolis, não interrompeu a fala do advogado, no trecho da sessão divulgado, e o promotor Thiago Carriço de Oliveira pergunta se a influenciadora não queria 'beber uma água'.
"Excelentíssimo, estou implorando por respeito, nem os acusados de assassinato são tratados do jeito que estou sendo tratada, pelo amor de Deus, gente. O que é isso?", questionava Mari Ferrer, chorando.
A professora Caroline Vitorino pontua que casos assim não são raros no sistema judiciário, quando se fala de crimes sexuais, e descreve que a vitimização acontece três vezes.
"A vitimização primária é a prática do ato delitivo. A secundária é praticada pelo Estado em relação à mulher vítima de estupro - mesmo que o homem também possa ser vítima, a maioria é do sexo feminino. É quando a mulher precisa ir à delegacia e ser submetida ao exame, prestar depoimento perante um delegado, depois perante um juiz. Todas essas pessoas deveriam cuidar e ouvir as vítimas, mas não estão preparadas para isso. E, depois, a mulher é vitimizada novamente quando é estigmatizada pela sociedade em geral e sofre preconceito", detalha a professora.
Caroline ainda chama a atenção para o fato do depoimento da vítima ter sido quase que desconsiderado no processo. "O Código de Processo Penal prevê uma série de provas que podem ser produzidas durante o processo. Como regra geral, o crime de estupro não se dá de maneira pública, na presença de outras pessoas; corre de portas fechadas, estando presentes ali apenas a vítima e o agressor. Justamente por isso os tribunais têm o posicionamento firme da palavra da vítima como prova de estupro. É uma prova de grande valor, apesar de não definir a sentença", explica.
Por meio de nota, a presidente do Fórum Nacional de Juízas e Juízes de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher (Fonavid), Jacqueline Machado, se solidariza com a vítima diante da "forma humilhante e constrangedora com que foi tratada durante a instrução do processo.".
A nota também reafirma o compromisso do Fonavid com o dever de observar a garantia de todos os direitos constitucionais das partes, e que vê como indispensável a "capacitação e formação dos magistrados e magistradas para a atuação em julgamento com perspectiva de gênero e étnico-racial, ausente de apreciações morais e estereótipos de gênero, com linguagem neutra e respeitosa. "
O documento também deixa explícito que o Fonavid vê como necessário que todos os "demais atores do sistema de Justiça (promotores, defensores públicos, advogados) sejam capacitados para a atuação com perspectiva de gênero, com o objetivo de evitar atos discriminatórios, misóginos, sexistas, racistas e violadores dos direitos de qualquer das partes", indicando que esse seria o caso de Mariana Ferrer.
As profissionais ouvidas nesta reportagem aguardam para que tanto o CNJ quanto a OAB de Santa Catarina tomem as devidas providências acerca das posições apresentadas no caso. Sobre a sentença, afirmam que o passo procedimental para tentar mudá-la é a de recurso de apelação por parte dos advogados de Mariana Ferrer.
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