O dominó na praça, o carro de som do comércio, o cheiro de leite fervente na cooperativa são cenas comuns da cidade que mostram que a rotina em Mimoso do Sul, no Sul do Espírito Santo, insiste em voltar à normalidade um ano após o maior desastre ambiental que atingiu o município. Em março de 2024, a chuva que atingiu a região deixou 18 mortos e um rastro de destruição.
Apesar dos meses que se passaram, para Maria Helena Firmino, de 72 anos, foi difícil recomeçar. Para a aposentada, a vida parou na madrugada do dia 23 março do ano passado, quando o filho Laílson Firmino, de 52 anos, saiu para ver o alagamento provocado pela forte chuva e nunca mais retornou.
Maria Helena guarda apenas uma única foto pequena do filho, de tamanho 3x4. Laílson morava com a mãe, dividia a casa e era a companhia da matriarca, que hoje segue sozinha vivendo no mesmo lugar, olhando pela mesma janela a rua por onde o viu sair pela última vez.
"Aqui na foto ele tava bonito, arrumado para um compromisso de trabalho [falou admirando a imagem]. Ele era bonzinho, nós 'se dava' bem, vivia bem aqui", disse ela sobre o mais velho dos quatro filhos.
A mãe ainda tem esperança de que o corpo de Laílson possa ser encontrado. As buscas ocorreram por 20 dias ininterruptos de trabalho do Corpo de Bombeiros na cidade, até serem encerradas no dia 11 de abril de 2024.
Entre a noite do dia 22 e a madrugada do dia 23 de março, a chuva em Mimoso do Sul ultrapassou os 600 milímetros, de acordo com medições em pluviômetros manuais, em algumas regiões da cidade, o que fez o Rio Muqui do Sul subir mais de nove metros.
Além de Laílson, que é considerado desaparecido, 18 pessoas morreram após a enxurrada. Dez mil pessoas tiveram que deixar suas casas e mais de 800 comerciantes foram atingidos.
A cidade do Sul capixaba possui pouco mais de 26 mil habitantes, segundo levantamento do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2020, o que reforça a proporção do impacto.
Uma casa completamente destruída, paredes derrubadas, lama, móveis que viraram entulho e carros de cabeça para baixo foi o primeiro impacto ao olhar a cidade que foi devastada pela chuva.
Com a limpeza, os moradores perceberam as perdas presentes nos detalhes, como nas fotos de família que não existem mais; em documentos perdidos ou sujos; na falta de um objeto especial; do livro de cabeceira destruído ou a travessa mais bonita que servia o almoço que foi quebrada ou levada pela enxurrada.
A Paróquia São José também teve a secretaria coberta pela enchente. Hoje, os fiéis ainda sentem a falta das informações dos livros de registros, que ficaram molhados e sujos de lama.
São 72 livros ao todo. Os primeiros datam de 1935. Segundo o pároco, foi feito contato e um orçamento com uma equipe da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) , que estimou que o trabalho de restauração ficaria em R$ 555 mil.
"Além da história, tem também questões da vida prática. Por exemplo, as pessoas precisam do registro de batismo e de crisma para dar entrada em um pedido de casamento. O que faz? No ano que passou, a Diocese autorizou que a gente fizesse declarações alegrando a chuva, mas e depois? A gente quer recuperar essas informações, mas precisamos captar recursos", avaliou.
A lama e o entulho que foram recolhidos nas ruas de Mimoso do Sul após a enchente foram colocados em dois locais. Um grande lixão foi criado na entrada da cidade e, outro, ainda maior, foi improvisado no Parque de Exposições.
Um sentimento quase unânime de moradores de Mimoso do Sul é o medo de que uma tragédia como a de 2024 se repita.
De acordo com o mapeamento realizado pelo governo federal, por meio da Companhia de Pesquisa de Recursos Minerais (CPRM), no município, atualmente, 887 famílias vivem em áreas de risco geológico, enquanto 1.120 famílias estão em áreas de risco hidrológico.
Tanto governo do Estado como a prefeitura dizem, entretanto, que esse número ainda está sendo atualizado.
Um dos que afirmam não dormir tranquilo quando começa a chover na cidade é o prefeito Peter Costa (Republicanos).
"Com certeza, eu tenho medo. Quando começa a chover eu só peço a Deus para que seja uma chuva passageira, para que não seja como aquela chuva do ano passado. [...] Se chover o que choveu da vez passada, 700, 800 milímetros, a cidade vai passar pelo que passou outra vez, com certeza", afirmou.
Peter Costa destacou três obras que precisam ser feitas para garantir uma mudança de cenário para a população.
De acordo com o prefeito, uma primeira dragagem nos rios da cidade já foi executada, alargando os leitos, mas que uma nova intervenção precisa ser feita para aprofundar os mesmos. A previsão é que a obra comece ainda em março.
O investimento vai ser de R$ 3,3 milhões destinados pelo governo do estado, com previsão de conclusão no primeiro trimestre de 2026.
Além disso, existe a previsão de construção de duas barragens secas, a 6 km e a 1 km do Centro de Mimoso do Sul.
Segundo Peter, o projeto já está sendo elaborado por uma empresa do Paraná e o prazo que o município recebeu do governo do estado é de assinatura da ordem de serviço da obra ainda no primeiro semestre de 2025.
"Vão ser as maiores barragens secas do estado, um modelo para outras localidades, uma com 18 metros de altura, outra com 16. [...] Com elas, essas enchentes menores a gente não vai nem sentir. Enchentes maiores como aquela, a gente vai ter algum transtorno na cidade, claro, mas mortes e transtornos maiores, isso aí não vai acontecer mais".
Por fim, a prefeitura aposta na construção de um vertedouro, uma espécie de calha seca, para mudar o curso do Rio Muqui do Sul em momentos de cheia, o que vai fazer com que a água fique menos represada na cidade.
Para isso é necessário auxílio do governo para desapropriação e compra de um terreno na entrada da cidade. Para este projeto, não há prazo estipulado até o momento.
O governo do Estado foi procurado para comentar a viabilidade e prazos dos três projetos, mas não respondeu aos questionamentos até a publicação desta reportagem.
Enquanto isso, o monitoramento dessas áreas conta com o apoio dos governos estadual e federal, que fornecem serviços de acompanhamento pluviométrico, hidrológico e geológico. Há meteorologistas de plantão 24 horas na Coordenadoria Estadual de Proteção e Defesa Civil (Cepdec) para análise e previsão de eventos climáticos adversos.
A Coordenadoria Municipal de Proteção e Defesa Civil (COMPDEC) está providenciando a instalação do sistema de alerta sonoro. A emissão de mensagens em caso de alerta e risco já acontece, com o apoio da CEPDEC.
Outro projeto que também não começou a ser executado é a construção de 150 casas populares, anunciada pelo governo do Espírito Santo, em junho de 2024. Os imóveis deverão ser entregues às famílias que perderam completamente a residência própria com a enchente.
Um edital foi aberto e três terrenos se inscreveram como possíveis locais para a construção das unidades, que devem passar por vistoria técnica nos próximos dias, para avaliar, entre outros, se estão em uma área segura em relação à chuva.
A previsão é que sejam construídos prédios de quatro andares, com 16 apartamentos em cada. O valor do investimento para as construções habitacionais será determinado após a aquisição do terreno, prevista para ocorrer em aproximadamente quatro meses. O início das obras deve ocorrer até o final de 2025.
O cadastro das famílias começou e existem critérios para quem vai ter direito a uma unidade, como renda de até três salários mínimos, inscrição no Cadúnico e ser proprietário de apenas uma residência (a que foi destruída).
Notou alguma informação incorreta no conteúdo de A Gazeta? Nos ajude a corrigir o mais rapido possível! Clique no botão ao lado e envie sua mensagem
Envie sua sugestão, comentário ou crítica diretamente aos editores de A Gazeta