Em um mundo cada vez mais tecnológico, a garotada utilizando celulares, tablets e games tem feito parte da rotina das famílias. Não é raro ver pessoas admiradas com bebês, que mal sabem falar, terem habilidade com os dedinhos para manusear o telefone. E aí começam os problemas. O uso precoce, e também excessivo em todas as faixas etárias, tem contribuído para o adoecimento das novas gerações, alertam médicos. Para agravar esse quadro, a pandemia da Covid-19 restringiu o convívio social e elevou o tempo de exposição de crianças e adolescentes às telas.
A crise sanitária impôs o fechamento de escolas, limitou a circulação das pessoas nas ruas e exigiu mudanças no ambiente familiar para acomodar o trabalho remoto e a educação domiciliar. Nesse contexto, nem sempre sobrava espaço para o lazer - as áreas comuns de condomínios também tiveram que ser fechadas - ou tempo dedicado de pais e responsáveis para entreter a criançada por tantas horas.
Assim, em muitas famílias, a babá eletrônica assumiu o papel principal do entretenimento infantil para ocupar os vazios de um dia inteiro dentro de casa. Precisamos começar a pensar em por que temos o uso abusivo de telas. Muitas vezes é um recurso da criança para preencher o ócio, o tédio, o abandono afetivo ou a falta de tempo de pais ultraocupados, pontua o neuropediatra Ricardo Cassa, da Rede Meridional.
Entretanto, outros fatores também devem ser considerados, diante das restrições sociais e de circulação durante a pandemia. Apesar da complexidade do momento, especialistas ressaltam que as famílias podem e devem intervir para mudar esse cenário.
Uma das dicas é criar uma rotina para a criançada, com horários de dormir e acordar, se alimentar, e com um tempo voltado para atividades ao ar livre. O quarto deve ser espaço para o descanso, e não para uso de eletrônicos. Os adultos também precisam colaborar, evitando, por exemplo, utilizar o celular à mesa, durante as refeições.
Para muitos, pode não ser um processo fácil, mas é possível mudar hábitos de crianças e adolescentes, uma vez que o uso intenso de telas se reflete no comportamento e na saúde deles.
Para orientar as pessoas que cuidam dos pequenos, em casa ou na escola, a Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) elaborou um manual em que, entre outras recomendações, aponta o tempo adequado de uso das telas por idade. O período de utilização varia de contraindicado até dois anos a, no máximo 3 horas por dia, na faixa de 11 a 18 anos.
E, claramente, nós estamos fora desses padrões. A pandemia só desnudou a gravidade que já existia, atesta o pediatra Rodrigo Aboudib, coordenador da região Sudeste na SBP.
A advogada Lilian Bertolani do Espírito Santo conta que a filha Liz, de 4 anos, já usava bastante as telas antes da pandemia, e a situação ficou mais complicada com o confinamento.
No período pré-crise, a menina via desenhos pela manhã, no trajeto da escola para casa e à noite. A mãe estava em um processo para retirar o uso noturno e diminuir gradativamente a utilização de eletrônicos, quando a Covid-19 trancou todo mundo em suas residências.
Piorou muito porque não tinha escola, não tinha lazer e só ficávamos dentro de casa. Compramos jogos, atividades para pintar, massinha, mas o dia é muito comprido. Então, foi bastante tempo de tevê também. Tentamos limitar o horário à noite, para não atrapalhar o sono, mas só agora, que a escola reabriu e estamos voltando à rotina, acredito que vamos retomar às rédeas da situação, avalia.
Roberta Ferec, uma das autoras do livro Tela com cautela: um guia prático para criar filhos na era digital (sem perder a sanidade), ressalta que é importante limitar o tempo de uso de tela, porém não é o único aspecto a ser observado pelas famílias quando trata-se de crianças e adolescentes.
Podem estar usando dentro do tempo recomendado, mas acessando um conteúdo absolutamente inadequado, ou fazendo uso dentro do quarto, na hora de comer. O uso saudável da tecnologia não é apenas a quantidade de tempo, mas a hora do dia e da noite, onde e de que maneira. Os especialistas concordam: a tela não pode substituir atividades essenciais para o desenvolvimento, como dormir, o livre brincar, as interações humanas. Olhar para tela é passivo, pondera.
A escritora afirma que não existe fórmula mágica e que, como tudo na educação e parentalidade, o uso da tecnologia é uma questão de diálogo, de limites e de exemplo.
O comportamento dos adultos é também um ponto de observação para a psicanalista Bianca Martins. Ela avalia que a pandemia provocou uma revolução para qual ninguém estava preparado, mas algo não mudou: a falta de mobilidade social.
Para Bianca, a crise sanitária serviu para escancarar uma situação que já era vivenciada por muitas famílias, que se isolam em seus círculos sociais, se comunicam por meio das redes, e às vezes não interagem nem com o vizinho de porta.
Mesmo antes da pandemia, frisa a psicanalista, já experimentavam uma espécie de isolamento com a rotina trabalho-escola-casa. Agora com o distanciamento, que é sobretudo do contato físico, as crianças acabam sendo as mais impactadas e sofrem de intoxicação eletrônica.
Isso é real. Elas estão intoxicadas e os pais vão precisar lidar com essa situação. Precisam levar para brincar ao ar livre, encontrar outras crianças, encontrar os avós, primos. As crianças também precisam de pais e mães presentes, sem que eles estejam trabalhando e só pensando em colocar comida dentro de casa, orienta.
Mas nada é simples. A pandemia provocou uma reviravolta na organização familiar da jornalista Letícia Bazet. Em março, ela e o marido já tinham conseguido estabelecer uma rotina na qual o filho Levi, agora com 3 anos, havia dois meses não usava telas, depois de passar um período, na avaliação dela, sem controle.
Sem escola para o menino e trabalhando de casa, o início da pandemia foi, para Letícia, bastante complexo. Naquele ritmo de trabalho, sem saber o que fazer com ele, eu e meu marido fomos permitindo que voltasse a assistir desenhos. De repente, já estava ficando cinco horas diante da TV, vidrado, como se estivesse hipnotizado. Quando íamos desligar, era caótico, sempre arrumava confusão, mesmo que tivéssemos combinado o horário. Chegou um momento em que pensei: isso não está legal, temos que parar de novo, lembra.
Como não podiam sair de casa, devido ao isolamento social, a estratégia inicial foi a de retirar a tomada da televisão e dizer para o Levi que o aparelho havia quebrado. Ele até tentava ligar com o controle remoto, mas não conseguia. Foram duas semanas de reclamação, pedindo ao pai que consertasse a tevê, até que se esqueceu do problema. E já faz pelo menos três meses, nas contas de Letícia, que o equipamento virou mero enfeite na sala da família.
Claro que não tem sido uma tarefa simples. Como o marido trabalha por escala, quando ele não está em casa, Letícia reprograma seu dia para ficar mais tempo com Levi e deixa suas atividades profissionais para o período da noite.
A jornalista diz que, hoje, o filho nem se recorda da tela que tanto o fascinava. Brinca no quintal, na pracinha, com bonecos e com carrinhos.
Deixamos ele mais livre. Mesmo com mais bagunça dentro de casa porque dou papel para ele cortar, mesmo que tenha mais coisas para arrumar depois, está melhor assim. Tenho que enaltecer meu marido porque, quando ele está fora da escala, o Levi não dá sossego. É o tempo todo: vem brincar comigo! E ele se coloca disponível para isso. Era uma atitude nossa que precisava mudar, e mudamos.
Rodrigo Aboudib, pediatra e coordenador na SBP, destaca a importância de colocar as crianças para brincar, de retomar as atividades presenciais nas escolas e, gradativamente, o convívio social.
Mas isso tudo sobre três pilares: distanciamento, uso de máscaras e cuidado permanente com a higienização das mãos, conclui.
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